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Magrão assume boemia e ignora o seu ‘personagem’
Nelson Cilo
Enviado a Ribeirão Preto
14/02/2004 | 19:48
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Solitário, na mesa de um bar, ao som de musiquinhas bem suaves ou estilo dor-de-cotovelo. Boêmio assumido. Em um dos cantos do Pingüim, tradicional ponto de encontro de Ribeirão Preto, reencontramos um dos líderes da Democracia Corintiana, um ousado modelo que literalmente virou a mesa do circo nos anos 80. Que desafiou as regras da velha e superada cartolagem da época. Que aboliu as concentrações, desatou o nó dos preconceitos e desamarrou as correntes da hipocrisia. Como se não bastasse tudo isso, o revolucionário da corte usou a coroa de um dos maiores craques dos anos 80. Segundo ele, o movimento não deixou heranças na mentalidade dos clubes, mas entende que serviu como referência para desgarrar o país da ditadura e redesenhar o regime da liberdade.

Na quinta-feira, Sócrates Brasileiro Sampaio Vieira de Oliveira completa 50 anos. Meio século de vida. O badalado Pingüim é o reduto de quem lá comparece diariamente para curtir um chope gelado, rever amigos, discutir literatura, embalar descontraídas conversas, falar bobagens, comentar seu projeto de revitalização de um cinema da cidade. Enfim, relaxar da cansativa rotina. Ou apagar sombras de amores perdidos e irreconciliáveis. Mas, se o tema é futebol, Sócrates não gosta de voltar a fita de um filme que não mais o agrada. Afinal, segundo ele, a fama o incomodava. Fugia da exagerada badalação em cima daquela “figura fictícia” que o amordaçava na hora de interpretar “um personagem de si mesmo”. Jura que não assimilava aquilo como “algo real”.

Atualmente, o Doutor se afastou dos estádios. Admite que é enfadonho entrar no blablablá. No entanto, reconhece que é preciso ver e rever um show sem graça para sacar o que vai comentar ou escrever nos artigos esportivos. Coisas do ofício. Telê Santana é que era o mestre de verdade. Zidane (Real Madrid) e Alex (Cruzeiro) é que são os melhores. Não, nunca deixou de dormir nas derrotas. Nem no dia em que desperdiçou um dos pênaltis que eliminaram o Brasil diante da França no Mundial do México. E as mulheres? Foram quatro casamentos. Tudo assinado no papel. “Uma paixão apaga outra. Acabou, acabou, não tem mais volta”, garante o ex-craque. Acompanhe os principais trechos da entrevista exclusiva ao Diário.

DIÁRIO – E, então, doutor Sócrates, 50 anos...

SÓCRATES – Calma, nem completei ainda (risos). Meu aniversário é na quinta-feira (dia 19). Mas não me preocupo. Vivo hoje. Não me ligo nem no passado nem no futuro. Só no presente. Nunca me preocupei. Sempre falei: de repente, a vida acaba em dez segundos. Penso: uma hora termina tudo isso.

DIÁRIO – Você não se ligava na fama. Fugia daquela badalação lá no Corinthians.

SÓCRATES – É verdade. Aquilo era uma coisa virtual. Não era uma coisa humana. Eu não passava de um personagem que eventualmente estava em mim. Interpretei aquele ídolo da Fiel numa fase de minha vida. Não assimilei aquilo como algo real.

DIÁRIO – Mas você estuda, estuda. O futuro parece preocupá-lo. Ou não é bem isso?

SÓCRATES – Estudo pra elevar meus conhecimentos. Invisto em mim, na minha cabeça. Agora, faço francês pra ter acesso à literatura deles. Posso garantir que nunca perdi um segundo na vida. Faria tudo de novo.

DIÁRIO – Como você vive atualmente em Ribeirão Preto?

SÓCRATES – Participo de um grupo de estudos na área de Farmacologia. Antes, cursei Medicina. Também concluí especialização em Medicina Esportiva. Toquei a minha clínica durante seis, sete anos. Aí resolvi estudar novamente. Encarei Administração Esportiva. Agora, estou nesse projeto de estudos e difusão contra as dores.

DIÁRIO – Fale de sua rotina profissional.

SÓCRATES – Escrevo minha coluna pra dois veículos: Carta Capital e São Paulo Agora. Comando um programa regional de TV, um talk-show na TV Thathi. Ainda coordeno um projeto social e outras coisas.

DIÁRIO – Ganhou muito dinheiro no futebol?

SÓCRATES – Não, o que é isso? No meu tempo não se ganhava como hoje. Mas acho que montei uma razoável estrutura financeira.

DIÁRIO – E as mulheres? Quantos casamentos?

SÓCRATES – Quatro casamentos. Primeiro, a Regina (mãe de Rodrigo, Gustavo, Marcelo e Eduardo), a Silvana (Campos, ex-tenista, mãe do caçula Júnior, de 13 anos), a Simone, a Adriana, minha atual mulher. Agora, chega.

DIÁRIO – Como é essa coisa de uma paixão, depois outra. É tudo assinado no papel?

SÓCRATES – Tudo. A Adriana é a última, sei lá. Estamos juntos há cinco anos. Uma paixão apaga outra. É assim: o que passou, passou, acabou. Não tem essa de voltar. Mas que papo mais furado... Isso não interessa a ninguém.

DIÁRIO – Contam que você também namorou a Rosemary (cantora da Jovem Guarda)?

SÓCRATES – Sim, namoramos uns dois anos.

DIÁRIO – O teu paraíso é no Pingüim (famosa cervejaria de Ribeirão Preto)? Você não sai daqui?

SÓCRATES – Sempre estou aqui na choperia, mas o meu paraíso é lá em casa. É aqui em Ribeirão que se tem a melhor qualidade de vida do país.

DIÁRIO – Não bate nenhuma saudade do Corinthians ou da Seleção Brasileira?

SÓCRATES – Me desliguei de tudo aquilo. Do personagem fictício que interpretei no auge da carreira, mas que um dia sumiu, acabou, morreu.

DIÁRIO – Mas você ainda é um símbolo do Corinthians.

SÓCRATES – Não há como fugir disso, não é mesmo? É claro que permaneço vinculado à memória do clube, mas e daí? Isso não me emociona.

DIÁRIO – E qual é a contribuição da Democracia Corintiana?

SÓCRATES – Não tem muita importância pro futebol de hoje. Mas, na época, revolucionou tudo. Era um grito de liberdade, assim como o movimento das Diretas Já. Foi uma contribuição do futebol pra combater a ditadura.

DIÁRIO – Afastou-se do futebol, não entra no blablablá?

SÓCRATES – Não tenho como escapar, mas digamos que o assunto não me atrai. Existem coisas muito mais importantes pra se falar, pô.

DIÁRIO – Telê Santana era o mestre de que tanto falam?

SÓCRATES – Às vezes, o contestavam como técnico. Mas Telê era tão competente quanto democrático. Não era teimoso. Ele dialogava e ouvia muito a gente. Se fosse mudar o time a toda hora que pedissem... Era, sim, o verdadeiro mestre.

DIÁRIO – No Mundial-82 da Espanha, não tínhamos como perder e perdemos, não é?

SÓCRATES – Jogo é jogo. Você ganha ou perde, só isso. Sempre encarei assim.

DIÁRIO – Você nunca deixou de dormir nas derrotas?

SÓCRATES – Nada, nunca. Sempre punha minha cabeça no travesseiro e dormia.

DIÁRIO – E no dia em que você desperdiçou aquele pênalti contra a França no Mundial de 1986, no México.

SÓCRATES– Paciência. Nem naquele dia. Chorar o quê? O futebol é um jogo de erros. Não prevalece a regularidade, ao contrário do que corre no vôlei ou basquete, não é?

DIÁRIO – Era um tipo de frieza que te ajudava de alguma forma? Você não se alterava.

SÓCRATES – Num certo sentido, não permitia que a emoção me atrapalhasse. Me controlava. É uma coisa que pode até apontar ou não um vencedor. É a situação psicológica que deve prevalecer mais do que os itens técnicos. Se você tem controle sobre si, logo percebe os detalhes que devem ditar os resultados.

DIÁRIO – Há quem diga que você era superior ao Raí, mas que ele se impunha mais do que você como atleta. Ou que você o influenciou a optar pelo São Paulo...

SÓCRATES – Bobagem. Nunca perdemos tempo com isso. Tínhamos e temos coisas mais importantes pra discutir. Quanto ao São Paulo, tudo aconteceu naturalmente pro Raí. Jamais interferi.

DIÁRIO – Que tal o clássico deste domingo no Morumbi?

SÓCRATES – Vou assistir pela televisão, é claro. Não gosto muito de futebol, mas é necessário acompanhar. Não tem saída. O nível de hoje anda baixo. A qualidade é muito ruim. Mas vejo. Afinal, preciso escrever minhas colunas.

DIÁRIO – Corinthians ou São Paulo? Dê um palpite.

SÓCRATES – Como corintiano, creio que vamos ganhar. No futebol de hoje, o pior pode até levar a melhor. É o único esporte que possibilita isso. Podemos vencer mesmo que o Corinthians não jogue nada e São Paulo jogue muito.

DIÁRIO – Você não se liga tanto. Não é de sofrer?

SÓCRATES – Ah, não. Simplesmente acompanho meio de longe. Torço, sim, mas de um jeito racional. Sem o envolvimento daqueles que não estiveram lá como jogador. A paixão dos torcedores é uma coisa mágica e fantasiosa.

DIÁRIO – Você não gosta que mexam na tua privacidade, mas digamos que a Regina (a primeira mulher) aparecesse ali... Daria um branco?

SÓCRATES – De novo? Não veria nenhum problema em conversarmos. Vou lá, beijo, cumprimento, dou um abraço. A vida segue. Nos damos bem. Somos amigos. Mude o assunto. Isso é pra (revista) Caras?

DIÁRIO – Quem você gosta de ver ou ler na imprensa?

SÓCRATES – O Zé Simão é um deles. Ele é de um humor finíssimo. Acho interessantíssimo. Gosto do Juca (Kfouri) agora na TV Cultura. Da Soninha, do Tostão... Não daria pra citar muita gente. Não leio nem ouço todo mundo. Quase não vejo esporte na TV. É mais o noticiário.

DIÁRIO – Você compõe um grupo que participou da reinauguração de um antigo cinema aqui na cidade (na sexta-feira). Como é o projeto?

SÓCRATES – É o Cine Arte Cauim. Uma igreja evangélica devolveu o prédio. Resgatamos o cinema de rua. Os alunos da rede pública terão acesso livre. As demais pessoas pagarão ingressos a preços populares. Apresentaremos os melhores clássicos, filmes de festivais, coisas boas, enfim. Teremos uma escola de teatro. Haverá espaço cultural, oficinas de arte, corais, quartetos musicais, cursos profissionalizantes. Será o nosso Templo da Cidadania.

DIÁRIO – Você vai colocar um novo CD na praça?

SÓCRATES – Na verdade, o Dedé Cruz é o cantor. Tento não atrapalhar. Sou mais compositor, mas a minha voz entra lá no meio. Anteriormente, a gente lançou outro. Eu, o Bueno e convidados... Entre eles, o Toquinho, o Carlinhos Vergueiro.

DIÁRIO – Qual é a pergunta que mais te chateia?

SÓCRATES – Nenhuma. Saiba de uma coisa... Já me chamaram até de v... Não importa. Podem me chamar do que quiserem. A opinião dos outros não vale nada.

DIÁRIO – Você já teve alguma experiência pra que te chamassem assim de...

SÓCRATES – Nã-nã-nã-não... Então, podem me chamar à vontade. Se tivesse alguma verdade nisso, eu seria coerente. Diria tudo. Assumiria. Qual seria o problema? Isso não mudaria o conceito que tenho sobre mim.

DIÁRIO – Quem é fera no futebol de hoje?

SÓCRATES – Zidane. Aqui no Brasil gosto do Alex (Cruzeiro), um cracaço. Não apontaria mais ninguém. O futebol de hoje não anda legal. Mudou pra pior do que há 20, 30 anos.

DIÁRIO – FHC ou Lula?

SÓCRATES – O presidente Lula. Ele começou bem na política externa. Sei que não será fácil, mas falta consertar o lado social, eliminar a miséria deste país, enfim.

DIÁRIO – E a Marta Suplicy?

SÓCRATES – A prefeita? É como se São Paulo tivesse um câncer incurável. Não tem jeito de resolver os problemas da cidade. Contradição? É preciso reconhecer que a teoria é diferente da prática. Sei que o PT prometia, mas, no poder, se vê diante das dificuldades que desafiavam os governos anteriores. Mesmo assim, mantenho a fidelidade. Acredito no Lula e na Marta.

DIÁRIO – Você se considera um boêmio, um boa vida?

SÓCRATES – Boêmio, sim. Nunca fui porreta no sentido da malandragem. As duas coisas, não. Curto a vida numa boa. Curto isto aqui (e levanta o copo de chope como se brindasse os fãs que o rodeiam numa das mesas do Pingüim).




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