Está quente. Em conversas nos consultórios, nas escolas, nas lojas, nos elevadores, nos pontos de ônibus, não têm sido raras as queixas da população quanto à onda de calor que assola o Brasil há algumas semanas. Termômetros ultrapassando os 30°C ou até mesmo os 40°C se tornaram acontecimento corriqueiro, em especial no Sudeste e no Centro-Oeste; locais como Guaratiba, bairro carioca, chegaram a experimentar sensação térmica de mais de 50°C; e mortes ligadas a efeitos da exposição ao “calorão” já foram registradas neste ano. À procura de sombra, água e vento, nos perguntamos: por que isso tem se tornado cada vez mais frequente?
Muitos responsabilizam somente a aproximação do verão, a massa de ar seco e quente que ganhou força sobre o País no fim de agosto e fenômenos como o El Niño, que marca 2023 e marcará 2024, pelas altas temperaturas – mas é ingenuidade desconsiderar que suamos em bicas também pelo endurecimento das mudanças climáticas. Nós, médicas e médicos de família e comunidade, comprometidos com o cuidado integral à saúde, devemos reconhecer a interconexão entre bem-estar individual, comunitário e saúde do ambiente ao nosso redor. Como presidente da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade) e cidadã, não posso ignorar que um planeta doente nos adoece.
Ian McWhinney, o inglês considerado pai da MFC (Medicina de Família e Comunidade), nos instigou a sermos “ecologistas por natureza” na prática médica, cientes de que o desequilíbrio ambiental resulta em riscos significativos para a saúde. Doenças decorrentes da poluição do ar, por exemplo, levam a cerca de 7 milhões de mortes prematuras por ano em todo o globo e reduzem nosso tempo de vida saudável, apontam dados da OMS (Organização Mundial da Saúde); as que vêm da poluição da água matam, apenas no Brasil, em torno de 15 mil pessoas anualmente, ainda segundo estimativas da organização.
Diante de números tão assombrosos, penso em trabalhos como de Mayara Floss e Enrique Falceto Barros, nossos colegas. No artigo “Estresse por calor na Atenção Primária à Saúde: uma revisão clínica”, disponível na RBMFC (Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade) V. 15 N. 42, de 2020, embora a humanidade caminhe rumo a um ponto de inflexão irreversível, os autores indicam que há solução para os problemas que experimentamos. Ela passa pelo desenvolvimento, por parte dos profissionais de saúde, sobretudo dos médicos de família e comunidade, que estão na linha frente do cuidado, de abordagens eficazes para lidar com o estresse e a exaustão causados pelas temperaturas extremas – condições muitas vezes negligenciadas, mas potencialmente graves –, e de compromissos, por parte dos líderes mundiais, quem levem à mitigação dos efeitos da crise climática.
A propósito, é esse um dos apelos da Wonca (World Organization of Family Doctors), à qual a SBMFC é filiada. Juntas, nossas entidades destacam a importância de se pensar em saúde planetária – não por acaso, temos um GT (Grupo de Trabalho) dedicado exclusivamente ao tema. Ressalto que uma das discussões mais urgentes que atravessam as atividades do GT é a inclusão de disciplinas de saúde ambiental nos currículos das faculdades de medicina no Brasil. A existência de aulas esparsas, módulos e ligas acadêmicas, embora seja bem-vinda e ajude a construir conhecimento, está longe de bastar.
Só com esforço conjunto, unindo saúde, educação, consciência ambiental e fiscalização política, será possível vencer o caos. No fim do mês passado, convém lembrar, uma comitiva brasileira com senadores e o presidente da República fez parte da COP 28 (Conferência das Nações sobre Mudanças Climáticas), em Dubai. É indispensável acompanhar a presença dos representantes que elegemos em eventos do gênero e cobrar deles postura verde e disposição para colaborar internacionalmente. Se não demorarmos, nas palavras do líder indígena Ailton Krenak, poderemos adiar o fim do mundo.
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