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Raízes quilombolas

Moradora de Diadema utiliza receitas tradicionais de famílias remanescentes do quilombo para produção orgânica e artesanal de doces e licores

Thainá Lana
15/01/2024 | 07:00
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Celso Luiz/DGABC


Cheiro de doce de leite no tacho, sabor de cachaça artesanal produzida no alambique e sensação de colher a manga direto do pé. Essas lembranças seguem vivas na memória da moradora de Diadema Michelle Aparecida da Cruz, 39 anos, que precisou resgatar suas raízes quilombolas para traçar um novo rumo para sua vida profissional.

Michelle é filha e neta de famílias remanescentes da comunidade quilombola Ribeirão Preto, localizada no município de Guidoval, em Minas Gerais. No local, ela passou sua infância e juventude cercada pelas tradições culturais, históricas e sociais desse grupo. Seus pais chegaram ao Grande ABC em 1981, onde criaram três filhos.

Em busca da sua ancestralidade, a diademense cursou história na FASB (Faculdade São Bernardo), e seguiu na busca pela história dos seus antepassados com pesquisas in loco, busca em acervos e entrevistas com moradores. Além da investigação pessoal, após se formar, Michelle atuou no Centro de Memória de Diadema, e migrou para pedagogia, e ministra aulas em uma escola pública de educação infantil na Capital.

Foi em 2020 que seu presente se uniu ao seu passado. Por conta da pandemia da Covid-19, Michelle enfrentou dificuldades financeiras e, com dois filhos pequenos na época, um recém-nascido e outro de 7 anos, precisou encontrar novas maneiras de complementar sua renda. Devido ao seu amor pela culinária, passou a vender produtos naturais na escola em que leciona.

Enquanto comercializava os alimentos, sentiu vontade de reaproveitar as frutas que cresciam em seu quintal, como mexerica, banana, jabuticaba, entre outras. Buscou em sua memória as receitas que cresceu vendo as mulheres da sua família fazer no quilombo, e começou, ao lado da sua mãe, Maria Lúcia Tavares da Cruz, 63, e do seu pai, Pedro Martins da Cruz, 68, a produzir em casa doces e diferentes sabores de licor.

No início, a produção artesanal era apenas para consumo próprio e também para presentear amigos e familiares. Porém, com o sucesso dos produtos, as pessoas começaram a incentivar Michelle a comercializar os itens. Foi assim que nasceu a marca Meninas Sabores, empresa familiar dedicada à produção de licores, geleias e compotas, utilizando receitas tradicionais de famílias remanescentes quilombolas.

“Estava passando por um momento de dificuldade, precisei voltar para as minhas raízes para me fortalecer. Sempre tive exemplo de mulheres fortes e independentes na minha comunidade, elas são o pilar da casa, e eu tinha que ser o da minha. Tive que ir lá na minha essência buscar tudo que vivenciei, todas as conversas no pé de cozinha com os meus familiares para buscar essa força. Tenho isso dentro de mim, apenas coloquei para fora algo que já existia”, diz Michelle, que explica ainda o significado do nome da marca. “Todas as minhas lembranças estão em sabores.”

Produção orgânica

A família de Diadema cuida do terreno, localizado no bairro Eldorado, de forma totalmente orgânica e com técnicas quilombolas. Michelle conta que para combater pragas e fungos, eles utilizam fumo e cachaça, por exemplo. Toda parte de adubação das plantas é feita de maneira natural, além das produções dos doces e licores.

Michelle afirma que, além das receitas e das técnicas agrícolas aplicadas no negócio, também utiliza as tradições quilombolas na produção. “Os licores são feitos com cachaça da comunidade, e o ingrediente mais utilizado em uma produção artesanal é a paciência. Assim como aprendi, o fruto tem o tempo dele para nascer, então é preciso esperar. Para fazer seis litros do licor de jabuticaba tenho que aguardar um ano, porque ele precisa ficar esse período em maceração em um local escuro, sendo mexido e olhado uma vez por semana.”

Em quatro anos de atuação, a empresa ampliou sua cartela de clientes, e além de continuar vendendo para amigos e conhecidos, agora participa de feiras, eventos comerciais e também vende os produtos em lojas de produtos naturais. 

Os campeões de vendas da marca Meninas Sabores são o doce de leite e o licor de jabuticaba. No total, são disponibilizados no cardápio da marca 15 sabores de licor, como chocolate, amora e jenipapo, além das compotas de abóbora, casca de laranja, banana, entre outros. A empresa também comercializa geleias de manga com maracujá, frutas vermelhas e maçã com pimenta. 

Microempreendedora exalta apoio na profissionalização da marca

Assim que decidiu vender seus produtos artesanais para o público geral, Michelle Aparecida da Cruz, 39 anos, decidiu que precisava se especializar na área. Moradora de Diadema, a microempreendedora conta que fez diversos cursos do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), como precificação e gestão de vendas, e de outras instituições.

“Nunca me vi empreendedora, comecei a estudar e ser convidada para eventos e feiras, inclusive participei da Feira de Economia Solidária de Diadema e da ExpoFavela, entre outros projetos que me ajudaram a ampliar meu conhecimento e também a profissionalizar o meu negócio”, ressalta Michelle.

Entre as iniciativas que a diademense participou no ano passado está o Protagonistas que Plantam Sustentabilidade, da ONG (Organização Não Governamental) Aventura de Construir. Através da Lei de Incentivo à Cultura, o projeto capacitou 30 microempreendedores no setor da produção orgânica.

Pedro Menezes, coordenador da área de desenvolvimento de projetos da ONG, esclarece que os beneficiários receberam formação humana integral e também construção de plano de negócios para cada empreendimento. 

“No caso da Menina Sabores, por exemplo, não foi diferente. Entendendo o contexto de Diadema e toda a raiz quilombola que ela carrega, foram desenvolvidas estratégias de melhoria de negócio em termos de finanças, marketing, empreendedorismo, logística, entre outros temas, para que o empreendimento se torne cada vez mais autossustentável”, finaliza o coordenador.

Para o futuro, Michelle pretende investir em maquinários e contratar funcionários para poder ampliar as vendas do seu negócio.

A história do quilombo Ribeirão Preto, de MG

Em busca da sua ancestralidade, a moradora do Eldorado, em Diadema, Michelle Aparecida da Cruz, 39 anos, resolveu cursar história e mergulhar de cabeça nas pesquisas para identificar o País de origem dos fundadores da comunidade quilombola de Ribeirão Preto, localizada na área rural do município de Guidoval, em Minas Gerais, que conta com cerca de 1.000 habitantes.

O núcleo quilombola foi formado durante o período colonial por cinco negros escravizados, das famílias Aleluia, Tavares, Cruz, Tomé e Martins. Segundo afirma Michelle, que é historiadora, eles colocaram fogo na fazenda em que eram mantidos presos e fugiram até o território, de 400 alqueires (hectares), onde dividiram entre eles e começaram a construir uma comunidade. 

“Quando chegaram ao local encontraram também uma grande população de indígenas, e por anos dividiram a terra com eles. Com as expedições e o processo de catequização, os Bandeirantes dizimaram os povos originários do local e permaneceram apenas os quilombolas”, conta. 

Na época, acontecia a Guerra do Paraguai, e para dar conta das baixas dos soldados e fortalecer as tropas, o imperador Dom Pedro II criou uma lei que permitia a alforria de escravizados em troca de serviço militar. Além disso, a região lidava com a epidemia de febre tifóide, que vitimou inúmeras pessoas em Ribeirão Preto.

Para sobreviver aos dois eventos, a guerra e a epidemia, os cinco quilombolas fizeram uma promessa de realizar anualmente um festejo para São Pedro, no dia 28 de junho. 

“Na verdade, eles utilizaram o sincretismo para poder realizar a celebração, driblar a intolerância religiosa e a perseguição. Xangô, orixá que faz parte das religiões de matriz africana, que era cultuado nessa data”, revelou a historiadora, que participa todos os anos do evento.

A comunidade quilombola continuou crescendo e os moradores foram se casando entre eles para continuar a linhagem dos fundadores. Hoje, os habitantes variam entre descendentes de famílias remanescentes e também pessoas de outros locais, já que alguns lotes foram vendidos.

Michelle afirma que não é uma tarefa fácil manter uma comunidade quilombola atualmente - a energia elétrica chegou apenas em 2004 ao local. Os habitantes continuam sobrevivendo da agricultura, com destaque para a plantação de pimentão, manga, hortaliças e abóbora, além da produção de leite, doce de leite e artesanato. 

“Além da tecnologia e das redes sociais, o agrotóxico também chegou até a comunidade. Meu tio foi trabalhar em uma fazenda próxima e ficou cego por conta dos produtos químicos, eles não estavam acostumados a usar. Após a euforia das novidades, as pessoas estão voltando às origens e compreendendo que não podem produzir em grande escala, principalmente com veneno, porque além de comercializar os alimentos, eles também consomem. É preciso ter consciência, isso não faz parte da nossa cultura, é do capitalismo”.

A historiadora pretende escrever um livro sobre a comunidade quilombola de Ribeirão Preto.




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