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Na estrada, fora da lei
Kléber Werneck
Do Diário do Grande ABC
16/03/2002 | 17:19
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Dez horas da manhã, e o vaivém é intenso em frente a uma padaria do bairro Ferrazópolis, em São Bernardo. O motor do ônibus modelo 1992 – mas que aparenta muito mais anos de rodagem – faz barulho e fumaça entre bagagens e crianças. Usuários, em sua maioria nordestinos migrantes, começam a subir no veículo apressados pela buzina do motorista. A viagem vai durar 51 horas e longos 2.894 quilômetros. O destino: Iguatu, uma cidadezinha no sertão do Ceará.

A linha, clandestina, existe há seis anos, e deixa o Grande ABC toda quinta-feira. “Se os policiais perguntarem, vocês digam que estão indo para Canindé fazer romaria”, avisou aos passageiros um dos proprietários da linha. A distância entre Iguatu e Canindé é de 272 quilômetros.

Para bular a fiscalização da Polícia Rodoviária Federal e conseguir a licença de trânsito interestadual, a viagem assume a fachada de excursão turística, cujo roteiro inclui passagem pelos municípios mais pobres do Norte de Minas Gerais e Sul da Bahia.

A reportagem do Diário embarcou nesta rota sem se identificar. O ônibus placa BWL-6485 de Iguatu, da Empresa de Transportes Douzinho Ltda., partiu de São Bernardo no último dia 7 e só chegou ao seu destino final dois dias e meio depois, após percorrer cinco Estados brasileiros. Além da Douzinho, a Tamandaré Agência de Turismo Ltda. é a outra operadora turística da rota. A partida dos ônibus acontece somente às quintas-feiras. Enquanto um sai do Grande ABC, outro deixa o Ceará, fazendo o trajeto inverso.

As empresas se aproveitam dos dispositivos do decreto federal 2.521, de 1998, que regulamenta o transporte turístico, para servirem como canal de migração. De acordo com a lei, a licença para trânsito interestadual é concedida aos ônibus de excursões das empresas de turismo credenciadas junto ao Ministério dos Transportes. Elas, no entanto, ficam proibidas de emitir passagens individuais (obrigatoriamente, os passageiros pagam ida e volta), pegar ou desembarcar usuários durante a viagem e transportar encomendas ou mercadorias que caracterizem comércio. As empresas também devem apresentar uma relação com nomes e RGs (carteiras de identidade) dos passageiros.

Na prática, nada disso acontece. As empresas conseguem a autorização com excursões fictícias e relações de passageiro adulteradas, não cumprindo nenhuma exigência ao longo do caminho.

A reportagem do Diário conseguiu uma cópia da autorização de viagem dada pela Polícia Rodoviária para a Douzinho, que mostra a fraude. No documento, a empresa informa que a rota (de ida e volta) une São Bernardo a Canindé – cidade que tem no turismo religioso sua principal atração. O ônibus, porém, não passa pela cidade.

Por isso, é tão importante doutrinar os passageiros. Toda vez que o veículo se aproximou dos postos da Polícia Rodoviária, vinha a instrução: “Não se esqueçam que estão indo para uma romaria, se perguntarem.” Mas ninguém perguntou.

A lista de passageiros fornecida à Polícia Federal tem adulterações grosseiras. O nome do fotógrafo do Diário Nário Barbosa, por exemplo, apareceu como Maria Barbosa. O documento também esquece de informar que uma das passageiras, a menina V.O., 6 anos, é menor de idade.

Desvios – A rota clandestina evita os cruzamentos com os ônibus das linhas regulares e com a fiscalização. Por isso, o caminho percorre estradas esburacas e sem segurança, colocando em risco a vida dos passageiros.

O preço da passagem é R$ 120 – contra R$ 180, em média, das viações regulares. “As empresas grandes estão cada vez mais de olho em nós, pois enquanto eles viajam com seis ou sete passageiros nessa época do ano, mantemos uma média de 30”, afirmou, em conversa gravada pelo Diário, o subtenente reformado da Polícia Militar Alberto Moura Neto, proprietário de três ônibus que realizam o trajeto e que também trabalha como motorista.

Neto afirmou que a principal vantagem do negócio é pagar menos pelos seguros de vida dos passageiros. “Enquanto em um ônibus de linha temos de pagar R$ 800 (por viagem), entre seguro e imposto, nesse pagamos apenas R$ 120”, afirmou.

O sócio Douzinho Santos negou que fizesse parte do esquema quando a reportagem se identificou. “Eu desci em Vitória da Conquista, na Bahia, e achava que o ônibus seguiria até Canindé, como foi combinado”, afirmou, embora tenha participado da orientação dada aos passageiros para mentir quando fossem parados pela polícia. Procurado novamente pela reportagem do Diário, o subtenente Moura Neto não foi localizado.




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