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Grande ABC ainda deve terciário de valor agregado a Celso Daniel
Daniel Lima
Do Diário do Grande ABC
15/04/2005 | 12:22
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Exatamente quatro anos depois de publicada na revista Livre Mercado, e às vésperas do 54º aniversário de nascimento daquele que se tornou o principal condutor da regionalidade ainda entrecortante do Grande ABC, o Diário decidiu publicar nesta edição duas páginas da provavelmente mais importante entrevista com Celso Daniel.

Era uma manhã de domingo de março de 2001 quando um ônibus com torcedores ramalhinos, dirigentes públicos e empresários de Santo André, deixou o Paço Municipal e se dirigiu a São Carlos. Todos foram acompanhar mais um jogo do Santo André, então na Série B do Campeonato Paulista.

Fui convidado às vésperas da viagem. Resolvi levar um gravador quando soube que Celso Daniel estaria entre os convidados. A entrevista consumiu praticamente todo o trajeto de perto de 300 quilômetros. Celso Daniel em início de terceiro e incompleto mandato falava com entusiasmo desafiador como prefeito da cidade que mais empobrecera nas duas últimas décadas. Foram para o ralo da desindustrialização 66% do repasse do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

Pela primeira vez desde 1989, quando iniciou trajetória política como titular do Paço de Santo André, Celso Daniel resolveu fundamentar um novo conceito sobre o que pretendia ver no futuro: uma Santo André e também um Grande ABC nas operações do terciário avançado.

Na contra-mão do Complexo de Gata Borralheira, enviesado sentimento de inferioridade da região diante da capital tão próxima, o então prefeito de Santo André desafiava o ranço cultural de repercussões econômicas e sociais ao afirmar que pretendia tirar vantagens da vizinhança com a cidade de São Paulo. Sim, Celso Daniel queria transformar em ponto positivo o antigo complexo de uma região que se via e ainda se vê como Gata Borralheira diante da Cinderela paulistana.

Por isso, Celso Daniel punha fé no Eixo Tamanduatehy, megaprojeto que mistura urbanismo e desenvolvimento econômico e que, nos anos seguintes, até mesmo porque o Grande ABC ainda não conseguiu a retomada sustentada de desenvolvimento, sofreu senão de paralisia mas está aquém do ritmo imaginado pelo idealizador. Tanto quanto o setor terciário de consultorias técnicas de engenharia, de designer, de informática, de marketing, de comunicações, entre outras atividades de suporte qualificado às indústrias. Não apenas o terciário de lazer e entretenimento.

Acompanhe os principais pontos da mais longa, em tempo e em distância percorrida, entrevista concedida por Celso Daniel, morto 10 meses depois:

Pergunta – O senhor está assumindo a Prefeitura de Santo André pela terceira vez e depois de oito anos de mandatos não seqüenciais; qual sua visão sobre a saúde econômica da cidade, levando-se em conta o esvaziamento industrial? Em função de circunstâncias macroeconômicas, Santo André é hoje um produto difícil de ser vendido aos empreendedores, apesar das mudanças que seu governo empreendeu em questões como legislação de uso e ocupação do solo e também da Lei de Incentivos Fiscais? O senhor está frustrado com os resultados?
CELSO DANIEL – Absolutamente. Muito pelo contrário. Santo André tem situação peculiar na região porque sofreu pesado esvaziamento industrial. Isso não aconteceu como um todo na região, que se mantém dinâmica com parte de sua economia sustentada pela indústria, particularmente as grandes cadeias automotiva e petroquímica. Mantivemos algumas empresas extremamente importantes, de porte e modernas tecnologicamente, mas perdemos muito da potência que acumulamos ao longo de todo o século XX. A despeito disso, começaram a se desenvolver em Santo André atividades do setor terciário, particularmente comerciais. Por isso a imagem pública de Santo André, particularmente para os andreenses, é contraditória. Ao mesmo tempo em que percebem Santo André como cidade dinâmica, inclusive do ponto de vista econômico mesmo com perdas industriais, os andreenses captam que o fato de não haver mais emprego industrial significa perda em termos de cidadania, ou seja, de direito ao trabalho de qualidade. A percepção das pessoas é de que a cidade cresce, é dinâmica e é viável. Até agora, entretanto, esse dinamismo não teve a contrapartida da recriação de empregos de qualidade que foram perdidos com o êxodo industrial. Tenho percebido que Santo André tem potencial muito importante em relação ao desenvolvimento futuro. Entendo inclusive que Santo André tem uma vantagem que pode ser colhida a partir de sua desvantagem. Qual é a desvantagem de Santo André? O esvaziamento industrial muito maior do que o dos outros municípios. Mas isso pode se transformar em vantagem porque a percepção do problema antes que isso se consolide nos outros municípios pode nos levar a constituir outro perfil econômico, sintonizado com os tempos que estamos vivendo.

Pergunta – Qual é esse perfil, prefeito, porque a dificuldade de encontrar essa espécie de nicho é que preocupa, não é verdade?
CELSO – Não há dúvida nenhuma de que concretizar o novo perfil não é tarefa simples. Há duas razões fundamentais para essa dificuldade. Em primeiro lugar porque está claro que, apesar do esvaziamento industrial, parte importante daquilo que Santo André tem de apresentar do ponto de vista econômico ainda radica na indústria. Isso significa que podemos, devemos e vamos continuar apostando no setor industrial. O problema é se pensamos em outros segmentos além daqueles que temos implantado de grandes empresas. E se pensamos no pequeno empreendimento industrial, aí não é tão simples assim de trabalhar. Particularmente, pelo fato de que cada vez mais há ponte de contato entre o terciário avançado e a atividade industrial. Cada vez mais essas relações são híbridas, que transitam com muita facilidade de um lado para outro. Quando falamos de terciário avançado, estamos falando de um setor extremamente heterogêneo e a respeito do qual temos imensa ignorância. Com um agravante: não tem sido suficientemente enfatizado. Esse elemento é o seguinte: a região é fortemente atrofiada do ponto de vista do setor terciário. Isso é menos verdadeiro hoje, quando se fala de atividades de lazer e entretenimento, mas é muito forte quando se fala de serviços de apoio à produção.

Pergunta – O que quer dizer com atrofiada?
CELSO – A região tem ausência desses serviços muito mais que proporcional ao parque industrial e ao restante do parque econômico que detém. Não conseguimos ao longo do século XX, e ainda não estamos conseguindo, internalizar no Grande ABC um conjunto de prestadores de serviços de apoio à produção para as atividades econômicas que já estão na região. A demanda está na região, mas a oferta é buscada fora, basicamente na capital.

Pergunta – Quer dizer que há  vácuo entre a indústria que ainda temos em Santo André e o comércio tradicional? Um buraco que Santo André e o Grande ABC como um todo ainda não souberam preencher, é isso?
CELSO – Acho que a resposta é positiva se você quer dizer que temos uma indústria que vem do passado e se modernizou e permanece na região. Temos um filão muito importante que foi descoberto pelo comércio e em parte pelos serviços pessoais, mas tem todo um outro setor, que é de ponta de desenvolvimento tecnológico.

Pergunta – O terciário que agrega valor...
CELSO – Exatamente, o terciário que agrega valor, o terciário avançado. Parte importante desse terciário é diretamente vinculado à produção industrial. São atividades de engenharia, de informática, de comunicações, de marketing.

Pergunta – Trata-se, inclusive, de um setor que não demanda muito espaço e que, portanto, está enquadrado nas possibilidades de atendimento físico em Santo André.
CELSO – Sem dúvida.

Pergunta – Esse direcionamento econômico poderia, inclusive, permitir resultados mais perceptíveis a partir da mudança da legislação de uso e ocupação do solo em Santo André.
CELSO – A mudança da lei ainda é recente. Por isso acho que a gente precisa ter um pouco de cuidado com a análise sobre o tempo de maturação das coisas. Digo isso porque começo a encontrar hoje, e espero não estar errado, os primeiros sinais de revitalização, de recuperação, daquela parte que cobrimos no Calçadão da Oliveira Lima. Ou seja, os resultados não se dão de maneira imediata. Muitas vezes é necessário um conjunto de iniciativas explícitas nesse sentido e, mesmo quando não existem, o processo de recuperação nem sempre é imediato. De toda forma, creio que a legislação é insuficiente para isso. Na verdade, precisamos convencer os empresários de que nossa região, e especificamente nosso município, é um espaço viável do ponto de vista econômico para implantação dessas atividades. Ao mesmo tempo, precisamos ir estimulando a criação e a transformação de uma cultura econômica de empreendedorismo para essas áreas. Precisamos ter condições de combinar iniciativas importantes na área de lazer e entretenimento com a manutenção do parque industrial. Aliás, sobre isso, pela primeira vez nos últimos anos, Santo André registrou estabilidade na participação industrial. Não estou falando da boca para fora. Os índices de participação de ICMS expressam isso. Espero que essa estabilização continue porque é condição básica para que o parque industrial permaneça em Santo André e gere, com isso, investimentos na modernização e expansão no setor. Se tivermos condições de estimular a geração de negócios com o setor terciário avançado, creio que Santo André estará encontrando seu novo rumo que, no caso, estaria muito sintonizado com as tendências do mercado econômico mundial. Estaremos, com isso, aproveitando um potencial historicamente muito grande colocado para a região e que diz respeito a essa atrofia. Por que a atrofia do setor terciário da região? Por causa da proximidade da capital.

Pergunta – Serviços avançados que São Paulo desenvolveu e permitiram que as perdas econômicas industriais não fossem tão agudas quanto as do Grande ABC.
CELSO – Sem dúvida nenhuma. São Paulo na verdade é outro caso, porque ainda mantém peso industrial absolutamente impressionante. São Paulo tem mais de 30% da produção industrial do Estado de São Paulo, algo absolutamente impressionante.

Pergunta – Já foi bem mais?
CELSO – Já foi bem mais, mas 30% é muita coisa porque estou falando só do município de São Paulo, não de seu entorno, de Grande São Paulo.

Pergunta – Mas São Paulo continua perdendo enquanto Santo André conseguiu estabilizar.
CELSO – Isso é verdade. Mas ao lado disso, apesar dos desgovernos de São Paulo, as chamadas economias de aglomeração, de externalidades positivas, a concentração de atividades, tudo isso é tão potente em São Paulo que a cidade não decaiu economicamente ao longo dos últimos anos. Pelo contrário. Apesar da falta de iniciativas públicas, São Paulo agregou novas atividades no terciário avançado e tem se tornado o coração de uma metrópole com forte vocação terciária. As empresas que estão no Grande ABC poderiam tranqüilamente suprir as necessidades do terciário avançado aqui mesmo na região. Exatamente por isso que a pesquisa que está sendo desenvolvida agora pela Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC sobre o setor de serviços tem uma amostragem da atividade em São Paulo. Precisamos saber o que acontece na capital para fazer comparação com o que não acontece no Grande ABC, de forma a atuar localmente para preencher essa lacuna. Se fizermos isso, além de tudo estaremos superando um buraco histórico, secular, em relação à capital. A importância dessa mudança é enorme porque o setor de serviços tem uma particularidade em relação ao industrial. Aquilo que é produzido pela indústria pode ser transportado porque é tangível. Pode-se produzir no Grande ABC e distribuir na China, na França. Serviços são bens intangíveis, não são commodities, e em geral têm de ser consumidos em pontos próximos e de preferência no local em que são demandados. Dessa forma, a proximidade física é fundamental. Se São Paulo tem esse tipo de serviços e nós não, isso mostra onde estamos atrofiados.

Pergunta – Isso quer dizer que, do ponto de vista histórico, os prefeitos que passaram pela região não souberam extrair vantagens da proximidade com São Paulo?
CELSO – O que se levanta é um ponto muito importante. Muitas vezes as pessoas pensam do seguinte jeito: para nós, não interessa ter um trem de qualidade ou uma extensão do metrô no Grande ABC porque vamos ficar mais próximos ainda de São Paulo e, com isso, vamos continuar comprando em São Paulo aquilo que poderia ser produzido aqui. Esse tipo de raciocínio parece verdadeiro, mas é apenas impressão. A questão de transporte, de logística, é via de mão dupla. Isso significa que se tivermos condições adequadas poderemos nos constituir num centro avançado de serviços complementar a São Paulo, e não dependente como hoje. A possibilidade de tornar isso realidade é contar com vias de comunicação rápidas e ágeis ligando com a Capital. Por isso o trem é fundamental. Se tivermos projetos de ponta na região, o trem é condição necessária para que sejam viabilizados. Referindo-me mais especificamente à pergunta, diria que o enunciado é em parte verdadeiro. Em parte, por que? Porque nosso projeto Eixo Tamanduatehy, do ponto de vista econômico, foi pensado exatamente com esse perfil de serviços de ponta. O Eixo Tamanduatehy não pretende ser apenas um grande projeto urbanístico. Pretende, sim, ser um grande projeto urbanístico, embora...

Pergunta – Embora por questão de marketing inicial tenha se dado mais ênfase à questão urbanística?
CELSO – Porque elemento urbanista é uma condição necessária para que os negócios do perfil que nos interessa possam ser implantados. Se não conseguirmos reformar a imagem da região, não conseguiremos torná-la atrativa para esse tipo de empreendimento. Por isso a modificação urbanística é condição necessária, embora não seja suficiente. Com a nova identidade de Santo André expressa no Eixo Tamanduatehy, pretendemos que os moradores adquiram auto-estima. Esse projeto urbanístico pode conferir, pela primeira vez na história, a garantia de integração entre os dois pedaços físicos da cidade, entre o primeiro e o segundo subdistritos. Embora transpire urbanismo, o projeto Eixo Tamanduatehy foi criado fundamentalmente para que aquela área historicamente ocupada por indústrias possa sofrer uma reconversão econômica de maneira a atrair atividades do setor terciário avançado, sem abrir mão, evidentemente, das indústrias que continuam a ocupar espaços.

Pergunta – Conclusão: é melhor ter uma grande metrópole do lado para poder usufruir das vantagens que se oferecem à ocupação do vazio econômico estrutural do que viver isolado dessa mesma metrópole?
CELSO – Não há dúvida nenhuma. Temos de aproveitar o aspecto positivo. No nosso caso, o lado positivo é contribuir para que a metrópole seja repensada como policêntrica, ou seja, como um conjunto de centros do ponto de vista urbano e do ponto de vista econômico complementares entre si. Dessa forma, teríamos uma metrópole mais equilibrada e condições de ganhar com a proximidade com São Paulo.

Pergunta – O senhor se sentiu traído, entre aspas, quando percebeu que estava sozinho jogando para valer o jogo de integração regional?
CELSO – Não, absolutamente. De jeito nenhum.

Pergunta – Não o quê?
CELSO – Não me senti traído.

Pergunta – Concorda que se lançou mais aos projetos regionais do que todos os demais?
CELSO – Acredito que, particularmente os prefeitos que foram assumindo o Consórcio Intermunicipal e a Câmara Regional, foram também assumindo um papel crescente na integração regional. Talvez a diferença tenha sido a de que me mantive apostando na integração regional, mesmo tendo deixado de ser o coordenador dos dois organismos.

Pergunta – Enquanto os demais fizeram só quando estavam no mandato, é isso que quer dizer?
CELSO – É, mas também houve ganhos, houve saldos depois que esses prefeitos deixaram a coordenação. Acredito que isso não é nada desprezível. Acho que muitos desses prefeitos apostaram e trabalharam completamente para a integração regional. Não foi só eu que fiz isso. É por isso, em primeiro lugar, que não me sinto traído. A segunda razão é porque acredito piamente que o desenvolvimento de cada um dos nossos municípios depende da integração regional, depende do desenvolvimento do conjunto do Grande ABC. É o caso do terciário avançado. Temos um espaço muito importante para ocupar na região. Santo André pode ter papel fundamental por causa das características urbanas, dos meios de transporte e da proximidade com São Paulo. Mas para dar certo precisamos que a economia de São Caetano, de São Bernardo e das demais cidades da região esteja bem. É isso que vai garantir internamente a demanda por serviços avançados.

Pergunta – Cobramos mais o prefeito Celso Daniel em relação aos demais porque entendemos que os resultados efetivos de quem liderou junto ao Poder Público a proposta de criar secretarias de Desenvolvimento Econômico merece ser mais cobrado mesmo. É o preço da liderança. Defendemos uma proposta através da qual as secretarias tenham mais gente qualificada, mais recursos materiais, enfim, que seja unidade de negócios no sentido público do termo, se se pode aplicar sem distorção essa expressão, porque o sentido é de fomentar empreendimentos.
CELSO – A idéia das secretarias prosperou em função da própria pressão da opinião pública, do esclarecimento de alguns políticos e, como resultado, algumas cidades simultaneamente implantaram a divisão. Não creio, por outro lado, que a secretaria deva ser uma unidade de negócios, mas um espaço que combine duas diretrizes simultâneas. A primeira diretriz diz respeito à secretaria ser forte estimuladora de negócios. A segunda diretriz diz respeito a conhecer e criar condições adequadas para que a economia da cidade se adapte ao longo dos tempos às transformações porque passa. Então, temos de trabalhar preocupados com o curto prazo, nessa visão pró-negócios, e ao mesmo tempo voltados para o médio e longo prazos, preparando condições para Santo André aproveitar todas as potencialidades.

Pergunta – Como observa as declarações do consultor espanhol do BID, Francisco Albuquerque, que é enfaticamente defensor do pequeno negócio?
CELSO – Não tenho dúvidas de que a reconversão econômica de Santo André e do Grande ABC depende desse despertar para o pequeno negócio. Por isso, vamos jogar muito peso no segmento. Vão ter prioridade trabalhos voltados à formação profissional e gerencial para que o pequeno empreendedor se sintonize com a economia nos níveis mais amplos. Temos um trabalhador com muita experiência na região, mas que se acostumou a ser assalariado; jamais foi preparado para empreender. Para empreender, é preciso estar disposto a isso e ter os instrumentos adequados.



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