Cultura & Lazer Titulo
Seleção de craques da risada
Sara Saar
Do Diário do Grande ABC
14/03/2010 | 08:32
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Em analogia ao futebol, o humor ocupa a Série B na cultura. Levar o gênero para a primeira divisão é o objetivo do comediante Paulo Bonfá, apresentador do Rockgol na MTV - ao lado de Marco Bianchi - e idealizador do festival Risadaria - Muito Além da Piada.

Entre sexta-feira e domingo, das 10h às 22h, o Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, será palco da primeira edição do maior evento de humor da América Latina. Durante três dias, o público poderá conferir apresentações ao vivo e ter acesso a acervos de comédia disponíveis em várias plataformas da mídia, como rádio, internet e televisão. "Outros eventos do gênero são segmentados. Ou exibem shows ou reúnem apenas exposições", explica Bonfá.

Para dividir a curadoria, ele convidou os feras Marcelo Tas (apresentador do CQC, na Band), Marcelo Madureira (Casseta & Planeta, Globo), Wellington Nogueira (fundador dos Doutores da Alegria), Caco Galhardo (cartunista) e Diogo Portugal (precursor da nova geração do stand-up comedy no Brasil).

O sexteto prepara diversas surpresas para os visitantes. Uma delas Bonfá já revelou ao Diário: uma jaula receberá comediantes, que podem fazer o que quiserem: ler jornal, dormir, interagir com o público. Uma placa faz recomendação para quem passa: 'não alimente os humoristas'. "A mensagem tem duplo sentido: Não ofereça comida e também não dê motivos para ser alvo de piadas", adianta.

O evento fará homenagens a dois grandes profissionais do gênero no País: Chico Anysio e Millôr Fernandes.

O Pavilhão da Risada abarca dois espaços principais. No Palco Devassa, os humoristas se apresentam de hora em hora. No primeiro dia, nomes como Ary Toledo, Bruno Motta e Marcio Ribeiro. Já a Sala Volkswagen exibe filmes brasileiros de comédia, intercalados com debates que relacionarão humor com saúde, propaganda, futebol e liberdade de expressão.

Os ingressos custam R$ 30, R$ 70 e R$ 100 (pacotes que dão direito a diferentes atrações). Entre os shows, está a série Encontros Gozados 2010, com humoristas nacionais a cada 15 minutos e apresentação de mímica da companhia australiana The Umbilical Brothers. Cia. Barbixas comanda outras atrações especiais: Jogando no Quintal e Improvável. Programação completa no site www.risadaria.com.br.
Mais informações nas páginas 6 e 7.


Números
Festival custou quase R$ 4 milhões, captados por meio da Lei Rouanet e outros patrocínios

Mais de 1.000 profissionais estão envolvidos entre montagem, produção e realização

Mais de 30 artistas se apresentarão ao vivo

50 shows ao vivo

6 debates temáticos

58 locais destinados a cinema, TV, rádio e internet sobre o assunto

Público esperado é de 50 mil visitantes entre sexta-feira e domingo

Capacidade simultânea em todo o evento é de 3.500 pessoas

Humor também é arte

Os brasileiros não associam o humor à cultura. Mas se lembram da música erudita, das artes plásticas. Essa é a opinião do comentarista Paulo Bonfá, que espera colocar o gênero um degrau acima no quesito arte, por meio do festival Risadaria - Muito Além da Piada. Segundo ele, o humor ainda é visto como "descartável, de fazer simples", mesmo com todo o sucesso atual. Ele enumera: a peça que está há mais tempo em cartaz é Trair e Coçar é Só Começar; o filme nacional de maior bilheteria é a comédia Se Eu Fosse Você 2; o programa mais antigo que ocupa o horário nobre da Globo é o Casseta & Planeta. Cita ainda as sensações CQC (Band) e Pânico na TV (Rede TV!).

Para tornar visível a força da vertente, torce para que o evento seja anual e, assim, as pessoas tenham a oportunidade de ver uma nova edição. Inclusive, já pensa nas atrações do Risadaria 2011.

Paulo Bonfá têm algumas preferências na área. Ele gosta de sátiras do cotidiano, como o programa Cilada (Multishow), de Bruno Mazzeo, e do humor improvisado, a exemplo dos espetáculos Jogando no Quintal e Improvável. "Não gosto nunca do humor baseado em estereótipos e minorias, como gay, loira, português, baixinho", diz.

Além do Rockgol, está na Oi FM, diariamente, das 12h às 13h, com o programa Totalmente Excelente. "O plano é arrebentar na África, de onde farei meus programas durante a Copa", adianta.


Liberdade ameaçada

Causador de recente polêmica por denunciar supostas formas veladas de censura no Brasil, o humorista Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta, dá continuidade ao assunto em Humor x Liberdade de Expressão - debate que integra a agenda do Risadaria, no dia 19, às 21h. "O humor político é quase impossível de fazer, ainda mais em época de eleição", aponta.

De maneira geral, Madureira gosta de tudo no humor. O que mais lhe atrai é o tipo inteligente e agressivo, o politicamente incorreto. "Vale até chutar o saco da mãe, mesmo que ela não tenha saco", brinca o comediante, que não tem a pretensão de ser levado a sério.

Diversas estações de TV estarão distribuídas pelo Pavilhão da Risada para que o público possa fazer uma viagem pelos programas nacionais mais engraçados da história, casos de Família Trapo e Planeta dos Homens. Ainda em relação à TV, o mestre dos mil disfarces que revolucionou o humor, Chico Anysio, recebe homenagem no festival com apresentação de Tom Cavalcante na abertura do evento.

Pela primeira vez, figurinos originais de alguns dos mais de 300 personagens criados ficarão expostos. Trechos de programas dos quais participou também serão exibidos. "A obra fala por si. Ele teve importante papel na transição do humor no rádio para a televisão. Os personagens formam um painel da cultura brasileira", analisa Madureira.

Na Globo, o Casseta & Planeta tem estreia de temporada no dia 6. "Em ano trepidante de Copa do Mundo e eleições, haverá surpresas. Logo no primeiro dia, tem a participação do Dourado, o homofóbico do BBB", adianta o comediante. SS

Cartum tem seu espaço

Genial e óbvio. É com essas palavras que o cartunista Caco Galhardo - autor de tirinhas como Julio & Gina e Chico Bacon - define o Risadaria. "Como ninguém pensou nisso antes?", perguntou-se quando recebeu o convite para ser curador. E afirmou, convicto: "Não tem como dar errado".

Em ano de futebol e política, o espaço do humor gráfico do festival contempla os temas da atualidade com painel produzido por diversos chargistas, a exemplo de Angeli. Tirinhas de jornal, ampliadas, ganham espaço em móbiles.

O refinado humorista de texto e desenho Millôr Fernandes será homenageado com painel que exibe diversas de suas obras. "Ele produz muito. Vários trabalhos foram selecionados, mas costumamos dizer que fica exposto 0,003%", comenta Galhardo.

O cartunista também já planeja a próxima edição. A ideia é produzir um painel que conte a história do humor e do cartum no Brasil, além de outro que explore trabalhos feitos nos países do Mercosul.

TALENTO
O Concurso Nacional de Novos Talentos do Humor - Risadaria recebeu cerca de 600 inscrições. Os jovens candidatos mostram o que sabem fazer de melhor em texto, vídeo e desenho. Todos os trabalhos que podem ser votados até amanhã, estão no site www.risadaria.com.br. Os primeiros colocados de cada categoria recebem o prêmio de R$ 3 mil.

Para o iniciante, Galhardo sugere: "O negócio é sentar até encontrar o traço e o discurso. Não tem outra saída. É fruto de trabalho árduo".


Graça está no sangue

O humorista Tom Cavalcante, que comanda o Show do Tom, na Rede Record, nasceu no Ceará. Sua origem é compartilhada com muitos colegas do ramo, a exemplo do ‘padrinho' Chico Anysio.

Vista como celeiro do humor no Brasil, a região Nordeste teria um motivo especial para tal título? O apresentador aposta nas influências sociais. "É uma banda menos assistida do País que transforma as dificuldades em algo prazeroso de se viver", afirma.

Entre as peculiaridades do humor nordestino, citadas por Cavalcante, está a capacidade de ser simpático, bom de papo e prestativo. "São todos os requisitos de que está de bom humor com a vida", analisa.

Segundo o humorista, a produção e a recepção deste gênero no Nordeste está em processo. "Somos um País jovem. Sinto que o humor a cada dia, com a evolução dos tempos, tem um papel importante na percepção do imperceptível", defende. E faz um apelo: "Precisamos ter a liberdade de falar das nossas mazelas sem sermos censurados".

A televisão é considerada elemento de popularização da arte, inclusive foi a TV que alavancou sua carreira, a partir de 1992, quando ingressou Na Escolinha do Professor Raimundo.

Como diretor, redator e apresentador, Cavalcante diz estar com ‘trabalho até a tampa'. Além do programa humorístico na Record, viaja com o espetáculo Chico.Tom pelas capitais do Brasil com o homenageado Chico Anysio. SS

 

De cara limpa ou pintada

Diogo Portugal, um dos precursores da nova geração de stand-up comedy no Brasil, promete subir ao palco de cara limpa, munido apenas do microfone. Tem shows na sexta-feira (dia 19), a partir das 10h, no Palco Devassa, e no sábado (20), durante sessão dos Encontros Gozados 2010.

O ator não se prende muito a textos e fala sobre assuntos variados. Comenta, por exemplo, sobre pessoas distraídas, por também se incluir no grupo. "O DDA (défcite de atenção) é uma singla bonita que encontraram para definir os mongóis", brinca Portugal.

O curador não conseguiu incluir no Festival seu novo espetáculo, Fritada, por falta de tempo. Acompanhado de outros humoristas, faz perguntas ‘ácidas' ao convidado, que rende ótimos momentos de riso. Os primeiros a participar foram Rita Cadillac e Rogéria.

"Faço rir com o outro e não do outro". O lema é do fundador dos Doutores da Alegria, Wellington Nogueira, que pretende mostrar no Risadaria um pouco do trabalho que exerce nos hospitais. "Vamos circular pelo espaço e fazer check-ups para medir o teor de bobeira no sangue."

O humorista também faz a mediação do debate Humor e Saúde. "A partir da nossa experiência, falo sobre o impacto que os Doutores da Alegria têm nos hospitais. Nunca pensei que fosse possível ser essencialmente artista, fazer parte da equipe de saúde e causar tanto impacto", afirma. Também se apresenta no Palco Devassa, na sexta-feira, às 10h.

Rir para não chorar

Durante cinco anos, o professor titular de Teoria da História na USP Elias Thomé Saliba estudou documentos e publicações se fazendo a seguinte pergunta: "De que maneira o riso se relacionou com a construção de uma identidade do povo brasileiro?" A pesquisa tomou forma de tese, adaptada depois para o livro Raízes do Riso: A Representação Humorística da História Brasileira da Belle Époque aos Primeiros Tempos do Rádio (Cia. das Letras). Do catatau de 360 páginas vem a conclusão nada engraçadinha:

"No caso brasileiro, humor e riso compensam a falta de identidade. Uma sociedade mal costurada, que sempre praticou a exclusão. Brasileiros só se sentem brasileiros quando toca o Hino Nacional, tem jogo da Seleção. O humor funciona como Carnaval e futebol para ter esse momento de identidade. Daí o título Raízes do Riso. Claramente inspirado no Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, cuja tese básica é que poderemos algum dia superar essas raízes personalistas, individualistas, emocionais. Não conseguimos ver o mundo sem emoção, distinguir o público do privado. Queremos transformar o público numa coisa nossa, pessoal. Vem das nossas raízes ibéricas.

Daria para escrever outro livro: Raízes do Choro. O brasileiro não resiste muito à seriedade. Quando Ayrton Senna morreu, menos de 24 horas depois já me contavam anedotas". A seguir outras considerações do acadêmico, especializado em História da Cultura.

DÉFICIT EMOCIONAL
Em muitos casos, o riso brasileiro nasceu assim, como que para compensar um déficit emocional em relação aos sentidos da história brasileira (...) Surge, naqueles efêmeros momentos de riso, a sensação de pertencimento que a esfera política lhe subtrai.

CASCA DE BANANA
A comédia originalmente era um evento no qual todos participavam e todos riam, em conjunto. Quando a modernidade cria propriamente uma esfera pública - o que ocorre, na história ocidental, entre os séculos 17 e 18 - é que o humor se fortalece como uma das mais disseminadas e universais formas de comunicação, já que todos os comportamentos humanos ganham repercussão coletiva (pública), suscitando reações emocionais (que incluem, é bom que se diga, tanto o choro quanto o riso). Portanto o humor - sobretudo o que nasceu com o século 20 - possui uma fortíssima vocação para a ambiguidade: se uma piada agrada e gratifica alguns ela acaba por ferir outros - não há remédio. Se fui eu quem escorreguei na casca de banana, eu não vou rir... Se o escorregão for de alguém que tem poder (político, pessoal ou qualquer outro) ele não só não vai rir, como vai proibir os outros de rirem.

POLÍTICOS
A esfera política sempre foi motivo de chacota porque as pessoas que participam da vida pública são iguais a todas as outras no plano individual - e esta diferença suscita ambiguidades que constituem o motor do riso e da piada. Hoje a esfera política é mais sujeita à chacota e ao riso cínico talvez porque os grandes projetos políticos de transformação social falharam.

DESGRAÇA ALHEIA
Numa época de crise de utopias, as sociedades regridem emocionalmente à sátira, à derrisão e ao humor. As pessoas riem das desgraças alheias, mas também das próprias desgraças. A produção humorística é ambígua. É o doa a quem doer. Não é inocente, é um espelho da sociedade, embora distorcido.

BALA DE FESTIM
Por outro lado, o humor, por mais agressivo que seja, incentiva a sociabilidade, sublima a agressão, administra o cinismo e, em alguns casos, estiliza a violência, dissolvendo-a no riso. "Fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar", diz Millôr Fernandes. Mas o riso também é a arma social dos impotentes. No decorrer da história, o próprio riso popular permitiu que se criasse, cada vez mais, uma cultura da divergência, ativa e oculta - mostrando como o humor se tornou uma arma política importante contra os regimes repressivos. Se não se pode mudar a história real, muda o sentido dela. O riso, a piada é, essencialmente, alteração de sentido, reversão de significado.

BOM PARA A SAÚDE
Para os indivíduos, a disposição de rir das tolices da humanidade sempre foi considerada pela medicina como um meio de preservar a saúde. Aliviar o excesso de bílis, ou de adrenalina que, em excesso produz melancolia e doenças. Talvez isto funcione para a sociedade brasileira também. É o rir para não chorar. Porque as pessoas que riem das piadas guardam resíduos de emoções que lhes vão permitir rir das maldades, dos preconceitos e das falcatruas reais. Quando as pessoas não riem é pior, pois os ressentimentos são recalcados. O que talvez explique porque o humor - pela graça ou pela inteligência - tenha sempre efeito libertador.

RETRATO VERDADEIRO
O humorista faz um retrato instantâneo e efêmero da história das sociedades, mas nem por isso, menos verdadeiro. A produção humorística é um espelho no qual as sociedades podem mirar-se - mesmo quando as piadas sejam vistas como "ruins" ou de "mau gosto"

POLITICAMENTE CORRETO
Assistimos agora ao predomínio da onda do "politicamente correto", que tem efeitos deletérios na produção humorística. A introjeção desta onda - que, no fundo, produz uma representação hipócrita da sociedade - pelos próprios humoristas tolhe a liberdade de criação e não lhes permitem fazer o que sempre fizeram de melhor: redescobrir a verdade pelo desmistificador olhar do cômico.
Colaborou Adriana Feder




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