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Em 'Todas as Coisas e EU', Gal revisita cancioneiros
Gislaine Gutierre
Do Diário do Grande ABC
13/11/2003 | 20:07
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Gal Costa diz que tem uma missão: não deixar que caiam no esquecimento pérolas do nosso cancioneiro. Por causa disso, puxou na memória composições feitas a partir dos anos 20 e nelas imprimiu o jeito Gal de cantar. O resultado está no disco Todas as Coisas e Eu (R$ 25 em média), o primeiro pela gravadora Indie Records, de Líber Gadelha. A produção é de Mariozinho Rocha.

Embora a idéia fosse centrar fogo em uma época que vai dos anos 20 aos 50, o álbum comporta, por exemplo, Brigas, de 1966, e Folhas Secas, lançada por Elis Regina em 1973. “Essas canções fogem do período planejado, mas foram incluídas porque para mim são clássicos. Nosso passado é tão rico, tão fantástico e ao mesmo tempo moderno, que revisitá-lo é maravilhoso. Para todas elas coloquei minha marca, dei uma cara totalmente diferente”, disse Gal, em entrevista exclusiva ao Diário.

A essa “cara totalmente diferente” entenda-se a voz cool da cantora e a formação, que reuniu regional, banda e orquestra. “Nunca vi ninguém usar uma formação assim”, afirmou. O trabalho também traz as marcas da influência de João Gilberto.

Mas, a despeito do intento de zelar pelo patrimônio histórico musical, Gal pinçou canções que ao menos não parecem beirar o risco de “extinção”. Estão entre as 15 faixas composições como Sábado em Copacabana/Copacabana, Pra Machucar Meu Coração, Nervos de Aço e o pot-pourri de Noel Rosa, com O Orvalho Vem Caindo, Fita Amarela, Até Amanhã e Palpite Infeliz.

“E Daí? por exemplo, é muito bonita. É a primeira a ter uma postura de protesto contra o preconceito e praticamente ninguém a conhece”, disse Gal. Sobre a possibilidade de as outras faixas entrarem em extinção, afirma “Não há, depois que eu as gravei (risos)”.

Para Gal, revisitar velhas composições “é uma missão e também uma questão de postura”. “No Fatal e mesmo na fase do Tropicalismo, eu já fazia isso. Sempre gravei coisas do passado, a vida inteira”.

Curioso é o detalhe que envolve a escolha das faixas. Antes das gravações, o repertório foi submetido a uma avaliação dos fãs via Internet. As mais votadas foram Ave Maria no Morro e Folhas Secas. Um resultado que não interferiu em nada no projeto, porque Gal já sabia e tinha definido o que iria fazer. “Deve ter sido alguma estratégia de marketing da gravadora, não sei”, disse Gal.

Apenas duas músicas daquela lista não entraram no disco: Caminhamos e Mulambo. “Resolvi tirá-las porque não gostei do resultado final”, afirmou. Assim, o disco ficou com duas a menos do que o projeto original.

Qüiproquó – O lançamento desse disco envolve uma outra polêmica: o DVD que seria feito a partir de um show no Rio, em outubro do ano passado, mas foi cancelado às vésperas. “Achei que seria melhor enfrentar o desgaste do adiamento do show que fazer algo aquém do que meu público merece”, disse. Ela afirmou que pretende realizar o show, com direção de Bia Lessa, o mais rápido possível, no Rio ou em São Paulo. Provavelmente, terá de investir recursos próprios.

Apesar de todo qüiproquó, disse que a relação com a Indie Records hoje “é tranqüila”. O contrato foi apenas para este disco. Gal, que deixou a BMG por vontade própria e que gravou o álbum anterior pela MZA/Abril, acredita que o mercado fonográfico passa por uma crise mundial.

“As gravadoras grandes estão muito perdidas e as pequenas, como têm um cast menor, demonstram mais vontade de investir no artista e na qualidade do trabalho. A Norah Jones, por exemplo, veio de uma gravadora pequena e fez enorme sucesso. Isso é relativo. Acho que hoje não é importante para um artista grande estar em uma multinacional”, analisou.

No entanto, Gal parece não se ver assinando um álbum independente, como tem sido a tendência do mercado. Ela sorriu e respondeu: “Prefiro ter essa independência de fazer um contrato por disco. Estou livre para fazer o que quero e isso é mais valioso que estar amarrada a um contrato de cinco anos”.

Conservadorismo – Se por um lado Gal Costa, produtor e arranjadores conseguiram chegar a um bom resultado do ponto de vista técnico e estético, Todas as Coisas e Eu padece por falta de ousadia.

O disco tem a virtude de se situar de forma acertada, cronologicamente, ao resgatar a sonoridade dos regionais que tanto marcaram a época de ouro do rádio abarcada nesse trabalho. Ganham peso com a participação de banda. As cordas, que surgem de maneira muito suave, parecem estar lá para dar um verniz. Soam como uma pitada de pretensa elegância.

O melhor fica para o fim, com Gal desagüando em samba do mestre Noel. “Adoro cantar samba” disse Gal, pouco antes de terminar a entrevista. Talvez esse fosse um bom caminho. Em tempos de estagnação e retroalimentação, um crossover seria bem-vindo.

Faixa a faixa

1. Linda Flor (Yayá) (Ai, Yoyô) (Luiz Peixoto/Marques Porto/Henrique Vogeler/Cândido Costa) – “É uma música linda. Essa e Nervos de Aço são tão fortes que quando as canto, me sinto tomada por elas. É como se ficasse possuída, não tenho controle”. Dos anos 20, é um dos primeiros sambas-canção da história; com Aracy Cortes.

2. Sábado em Copacabana (Dorival Caymmi/Carlos Guinle)/ Copacabana (João de Barro/Alberto Ribeiro) – “Eu cantava essa música na Bahia, nas festinhas. E é de um baiano, Dorival Caymmi, prestando homenagem ao Rio. Gosto dessa fusão”

3. Nossos Momentos (Luiz Reis/Haroldo Barbosa) – “Linda, essa música. Conheci através da Elizeth Cardoso (que a gravou em 1961). Está na minha memória afetiva. Eu a canto quando estou andando ou fazendo outras tarefas”

4. Pra Machucar Meu Coração (Ary Barroso) – “É mais uma homenagem ao Ary Barroso, nesse centenário de nascimento. Já fiz um disco com composições dele, mas tinha vontade de gravar essa.”

5. Dono dos Teus Olhos (Humberto Teixeira) – “Quando formatei o repertório, quis colocar algo sobre o amor de um jeito mais nordestino, engraçado, diferente, e que tivesse um andamento mais rápido.”

6. Brigas (Evaldo Gouveia/ Jair Amorim) – “Linda. Conheço-a na voz de Altemar Dutra”

7. Fim de Caso (Dolores Duran) – “Adoro a Dolores, desde garota. No disco com Jobim eu já havia gravado Por Causa de Você.”

8. Nervos de Aço (Lupicínio Rodrigues) – “Sinto a mesma emoção forte de Linda Flor, quando a canto”.

9. Alguém Como Tu (Jair Amorim/ José Maria de Abreu) – “Maravilhosa. Conheço a gravação do Dick Farney. Gostava da música mas não era apaixonada pela interpretação dele. Então tentei algo diferente, mais alegre.”

10. Ave-Maria no Morro (Herivelto Martins) – “Escolhi essa música porque a amo. Conheci na gravação de Dalva de Oliveira, que é outra referência forte para mim, assim como o João Gilberto. Aquele agudo no final, coloquei de uma forma mais doce.”

11. Chora Tua Tristeza (Oscar Castro Neves/ Luvercy Fiorini) – “Fizemos um arranjo diferente para essa música, que ficou mais um sambalanço”. Composta por Neves ainda adolescente, ficou famosa na voz de Alaíde Costa.

12. Kalu (Humberto Teixeira) – “Foi um grande estouro na voz da Dalva. Era menina quando a ouvia. E eu precisava de uma música para fazer um contraponto com as mais lentas.”

13. Folhas Secas (Nelson Cavaquinho/ Guilherme de Brito) – “É das mais lindas. Eu já havia cantado na quadra da Mangueira junto com Gilberto Gil, quando eles fizeram uma homenagem aos Doces Bárbaros.”

14. E Daí? (Proibição Inútil e Ilegal) (Miguel Gustavo) – “Poucas pessoas conhecem, e foi a primeira a adotar uma postura contra o preconceito.” Sucesso de Isaurinha Garcia e de Elizeth Cardoso.

15. O Orvalho Vem Caindo (Noel Rosa/ Kid Pepe)/ Fita Amarela (Noel Rosa)/ Até Amanhã (Noel Rosa)/ Palpite Infeliz (Noel Rosa) – “É um medley de Carnaval. Mas resolvi não cantar a letra inteira delas, porque normalmente as pessoas se lembram mais do refrão. Ficou assim nas três primeiras. Só faço toda a Palpite Infeliz porque as pessoas a cantam na íntegra. São sambas lindos, adoro cantar samba”.




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