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Tempo de espera e de esperança
Illenia Negrin
Do Diário do Grande ABC
05/06/2011 | 07:30
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Samuel é um bebezão corado e simpático, de bochechas salientes. No colo da mãe, a dona de casa Kelly Galdino, 32 anos, se espreguiçou todo, fez careta, posou para foto. "Você não imagina o quanto eles são fortes, mesmo sendo tão pequenininhos." O comentário da mãe é quase uma prece. Prematuro, o menino nasceu após seis meses de gestação. Pesava um quilo e cabia na palma da mão. "Parecia um ratinho. Entrei em choque."
O bebê nasceu em 22 de fevereiro. Saiu do útero direto para a UTI Neonatal do Hospital Márcia Braido, em São Caetano. Kelly não pôde abraçar o filho que acabara de nascer. Nem vestir nele a roupinha escolhida com esmero para o primeiro dia de vida. Samuel foi entubado, ligado a aparelhos que o ajudavam a respirar e se alimentar. O mais próximo que Kelly conseguia chegar do filho era colocando as mãos pelas duas aberturas da incubadora. Passou 30 dias à espera de tê-lo nos braços. "É dor sem tamanho. Ele já melhorou bastante, hoje pesa 3,5 kg e não precisa mais dos aparelhos. Mas não há previsão de alta."
Kelly e o marido, o metalúrgico Rodrigo Galdino, 30, participavam na semana passada do grupo de terapia de UTI Neonatal do Hospital Márcia Braido. Há cerca de 100 dias, vivem intensamente a rotina hospitalar e são referência para outros na mesma condição.
"Os pais de bebês que nascem antes da hora também são prematuros. Eles não estavam prontos para receber esse filho, tanto no sentido prático quanto no emocional. E há os casos em que tudo corre conforme o planejado, e há complicações, previstas ou não. A angústia é enorme. Nosso papel é ajudá-los a encontrar mecanismos de enfrentamento", explicou a psicóloga Rosely Perrone, que coordena o grupo.
O principal desafio é lidar com a morte das idealizações. A mãe não sairá da maternidade com o filho nos braços. E seu bebê não é como os outros, saudáveis e rechonchudos. Ela terá de passar os próximos dias - ou meses - sentada em cadeiras desconfortáveis e corredores gelados. E, com o coração em frangalhos, terá de acreditar que aquele bebê debilitado pode vencer as bactérias, as doenças congênitas ou seus pulmões fraquinhos.
Mães de recém-nascidos internados em UTIs aprendem a enxergar miúdo. Contam cada centímetro crescido, cada grama incorporada ao peso e cada segundo que os pequeninos conseguem respirar sem ajuda mecânica. A duras penas, aprendem a encerrar os duelos inúteis com o tempo.
"A gente não controla nada. Essa é a mais pura verdade", concluiu a vendedora Carla Tavares dos Passos, 28 anos.
Ela deu a luz a Maria Eduarda em 8 de março. Mas não sabia que estava grávida. "Durante seis meses menstruei normalmente. Não engordei, não tinha barriga. Um dia senti dores no abdome, me agachei na sala e pari uma menina."
O bebê tinha 990 gramas, teve parada cardíaca e precisou se submeter a cirurgia no intestino antes de completar a primeira semana de vida. Perdida, Carla não conseguia assumir a maternidade. Observava a filha de longe, não conseguia tocá-la. Incentivada por outras mães do Márcia Braido, começou a se aproximar. "Minha filha estava morrendo. O fato de eu estar mais presente foi um sopro de vida para ela. Hoje minha prioridade é estar aqui com a Duda. Olha como ela está grandona e pesada". comentou Carla. Duda está com 2,4 kg. Pronta para receber a visita da irmã de 7 anos, Gabriele.

Dia após dia, mães aprendem a cuidar do bebê hospitalizado

Nos primeiros dias de hospital, a mãe é incentivada pela equipe médica a se aproximar do filho. O objetivo é diminuir a distância e a angústia impostas pela internação precoce. Aos poucos, a prática resgata a intimidade roubada pela terapia intensiva.
"A mãe fica dividida entre a vontade enorme de acariciar o recém-nascido e o medo de machucá-lo. Elas perguntam ‘posso encostar nele?' É como se o filho fosse nosso, do hospital", contou a coordenadora da UTI Neonatal do Hospital da Mulher de Santo André, Lucimara Liberali.
Aos poucos, elas se permitem cuidar. Aprendem a trocar fralda, dar banho e alimentar os filhos com o próprio leite, mesmo que gotejados pela sonda. A proximidade, devagar, preenche o vazio, mas torna ainda mais difícil a separação. Mesmo quando vão para casa, as mães não desgrudam o pensamento do hospital. É como se estivessem internadas com seus bebês.
A corretora de seguros Geisica Francisco Gomes, 25 anos, vive a experiência há um mês, no Hospital da Mulher. Ela se submeteu a parto normal com fórceps e a filha, Giulia, nasceu com hipertensão pulmonar. "Conversei com minha filha durante os nove meses de gravidez. Quando ela nasceu, voltei para casa sem ela. Não tinha como conversar ou senti-la. Foi doído demais", relembrou. A corretora passa, em média, 15 horas por dia na UTI Neonatal. Quando chega em casa, à noite, realiza todos os serviços domésticos. Cansar o corpo ajuda a tirar o peso das horas. Nos períodos difíceis, além da família, encontrou apoio em outras mães, como a manicure Maria Lúcia Tenorio Costa, 36. O filho dela, Gabriel, nasceu prematuro e foi diagnosticado com infecção no sangue. O garotinho se recupera bem. "Abandonei minha casa, praticamente. Meu marido e minha filha de 15 anos estão se virando sozinhos. Preciso disso agora", comentou.
A antes agitada Maria Lúcia aprendeu a ser paciente. "Percebi que existe um tempo que não me pertence. É preciso ter fé para entender e aceitar."

Rotina emociona equipe do HMU de São Bernardo

Nos corredores da UTI Neonatal do Hospital Municipal Universitário de São Bernardo, ela é carinhosamente chamada de "vampira". A enfermeira Danila Bassi Bernardes, 28, é responsável por colher amostras de sangue dos pequeninos, todos os dias - às vezes mais de uma vez - mas é unanimidade entre as mães. "Tem muito amor nisso que ela faz", disse Mayara de Castro Costa, 18, mãe de Mayra.

Danila se comove com as histórias, progressos, perdas. É a primeira a chorar ao se despedir de um bebê - quando ele recebe alta ou não sobrevive. "Acho que o fato de me emocionar me gabarita para a função. Há momentos em que não há mais nada a se fazer. E só de estarmos ao lado das mães e dos bebês já faz diferença", sustentou.

Mayara conhece bem o apoio. Muito tímida, frequenta o hospital diariamente desde 11 de abril, quando Mayra nasceu. Mãe de primeira viagem, pariu no sexto mês de gestação. "Passei muito nervoso e dificuldade. Minha família é muito humilde, às vezes a gente não tinha o que comer." É de pouco falar, mas se sente acompanhada pela equipe. "Quando vou embora, meu coração aperta. Sei que elas (a equipe) cuidam muito bem."

Cuidar, às vezes, não é trazer alívio imediato. "Nem todas as histórias terminam bem, com as mães trazendo seus filhos crescidos ao hospital, anos depois, para ganhar o nosso abraço. A morte é realidade presente. E ela também merece olhar generoso", ressaltou a chefe da pediatria do HMU, Cibele Lebrão.

Há duas semanas, um caso mobilizou a equipe. Após parto prematuro, mãe e filho foram internados na UTI. O bebê morreu 36 horas depois. O pai foi o primeiro a receber a notícia. Acompanhado pela equipe, segurou o filho pela primeira vez. Depois, levou o recém-nascido para os braços da mãe, que o beijou, acariciou e disse o quanto o amava. "Nós incentivamos esse contato, para que os pais possam se despedir e vivenciar o luto", contou a assistente social do HMU, Milena Ribeiro Iha. Nesse dia, a equipe se emocionou tanto que também precisou de cuidados.

 

 




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