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Livro sobre Shakespeare ganha versao em português
Do Diário do Grande ABC
02/06/2000 | 15:55
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Houve um tempo em que o nome de William Shakespeare (1564-1616) nao conseguia atravessar o Canal da Mancha - e, quando isso acontecia, era motivo de chacota. No reino de França, Voltaire nao era o único grande pensador a menosprezar o dramaturgo e poeta inglês. Shakespeare só passa a ser reconhecido como grande gênio na França quando o movimento romântico se firma no país, cuja rivalidade com a Inglaterra é nao apenas histórica, mas também literária. E é na escrita do maior nome do romantismo francês - Victor Hugo (1802-1885) - que Shakespeare ganha o prestígio que lhe era injustamente negado.

Em "William Shakespeare" (Campanário Editorial, 328 págs., R$ 28), lançado em francês em 1864 e que só agora ganha uma versao no Brasil, graças a uma editora de Londrina (PR), Victor Hugo, autor de "Os Miseráveis" e "O Corcunda de Notre Drame", faz um imperdível perfil ensaístico do criador de "Hamlet" e de "Sonhos de Uma Noite de Verao". O livro chega às livrarias ainda nesta primeira quinzena de junho.

"William Shakespeare" está incluído entre as leituras que o crítico literário Harold Bloom afirma ter-lhe proporcionado "prazer e entendimento particulares", no apêndice em forma de lista de seu "O Cânone Ocidental" (Objetiva, 1995).

Trata-se de um encontro de gigantes da literatura universal. E Shakespeare torna-se um belo pretexto para que Victor Hugo eleja seus gênios, incluindo o inglês numa lista que começa com Homero, passa por Ésquilo (que classifica como o Shakespeare da antiguidade), Sao Paulo, Dante e Cervantes, entre outros, até chegar ao dramaturgo inglês.

"Quem estiver procurando uma biografia nao vai encontrá-la, eu mesmo nao saberia classificar seu gênero, se tivesse de colocá-lo na estante de uma livraria", afirma o editor e tradutor (com Renata Cordeiro) do livro, Paulo Schmidt.

Reino do livro - A arte é a grande preocupaçao da obra, também um manifesto literário e uma ode à escola pública e universal. "A multiplicaçao dos leitores é a multiplicaçao dos paes, no dia em que Cristo criou esse símbolo, ele vislumbrou a imprensa", escreve. "Portanto, que tolice essa: a poesia está acabando! Poderíamos gritar: está chegando! Quem diz poesia diz filosofia e luz; ora, o reino do livro está começando".

Leda Tenório da Motta, professora da Pontifícia Universidade Católica de Sao Paulo, diz que Victor Hugo e Stendhal (1783-1842) sao os responsáveis pela "reapresentaçao" de Shakespeare à França e ao mundo. Aproximadamente na mesma época, Stendhal está escrevendo "Racine" e "Shakespeare", diz. Os dois, assim, apontam as diferenças que tinham em relaçao ao teatro francês e reforçam as posiçoes do romantismo, cuja construçao retoma do teatro de William Shakespeare a combinaçao do sublime com o grotesco.

Victor Hugo começou a escrever sobre Shakespeare no exílio, na ilha de Jersey, no Canal da Mancha. Deputado republicano, fora obrigado a deixar a França após o golpe de Estado de Luís Bonaparte - que se torna Napoleao III -, em 1851 (só retornaria à França em 1870). Inicialmente, o texto seria apenas um prefácio para a traduçao que seu filho, François-Victor, também exilado, preparava das obras de Shakespeare. Hugo percebeu que nao poderia escrever tao pouco sobre o autor inglês, a quem qualifica de "homem-oceano", e o texto introdutório converte-se num ensaio.

Ele também assinaria o prefácio (que consta dessa ediçao brasileira, como anexo), mais tarde, dizendo que "Shakespeare é um dos poetas que mais se defendem contra o tradutor". A partir dessa versao de François-Victor, em prosa, da obra de Shakespeare, o autor conquista o respeito dos franceses, lembra Paulo Schmidt.

Os cavalos do teatro,/strong> - No ensaio, Victor Hugo relata brevemente o modo como Shakespeare chegou ao mundo do teatro. Começa contando suas origens, em Stratford-upon-Avon. Vinha de uma família católica, o que, para Victor Hugo, era um vício, que teria levado a família a desabar. Lembra que "estreou num abatedouro". "Aos 15 anos, de mangas arregaçadas no açougue do pai, matava carneiros e bezerros". De seu casamento com Anne Hatway, realça o fato de, após ter com ela três filhos, a mulher ter sumido de sua vida, só reaparecendo no testamento, em que lhe deixa "a menos boa" de suas duas camas.

Por algumas moedas, Shakespeare guardava cavalos nas entradas dos teatros londrinos. "Ficou muito tempo na soleira do teatro, do lado de fora, na rua. Por fim entrou. Atravessou a porta e chegou aos bastidores. Foi bem-sucedido como call-boy, o menino que chamava, menos elegantemente, o que ladrava" - profissao que exercia por volta de 1586. A partir daí, o romântico Victor Hugo passa a enumerar as peças e a relacioná-las a fatos históricos. Cita, por exemplo, que, em 1589, Jaime VI, filho da decapitada Maria Stuart, rendia seus respeitos à decapitadora Elizabeth, enquanto Shakespeare escrevia "Péricles". "Hamlet" surge em 1603, quando Henrique IV afirma que Elizabeth "era virgem como eu sou católico".

Assim segue até que Shakespeare complete 52 anos, em 23 abril de 1616, dia em que morre: "Nesse mesmo dia de 23 de abril de 1616, morreu Cervantes, gênio da mesma estatura. Quando Shakespeare morreu, Milton tinha 8 anos, Corneille tinha 10, Carlos I e Cromwell eram dois adolescentes, um com 16, outro com 17 anos".

A imagem que Victor Hugo apresenta de Shakespeare nao o impede de identificar na França e na Inglaterra mundos diferentes. "Paris é a capital de uma vertente da humanidade, Londres é a capital da vertente oposta", acredita. Também vê no inglês e no francês idiomas "compostos em sentido inverso", quando discute a dificuldade de perseguir o gênio e de realizar a transposiçao da obra de Shakespeare. Ainda assim, afirma que "traduzir um poeta estrangeiro é aumentar a poesia nacional".

"William Shakespeare", o ensaio, é também um belo discurso do político e escritor Victor Hugo. Um avanço incrível para um país como a França, que apenas no ano passado viu uma montagem de "Henrique V" (no Festival de Avignon), a mais antifrancesa das peças do inglês - que foi o mais universal dos dramaturgos.




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