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Um Só Coração ajuda a 'explicar' a São Paulo de 1922
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
06/03/2004 | 21:59
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Pagu, musa modernista e introdutora da soja no Brasil, retratada como uma maluquete deslocada em meio a multidões de melindrosas na interpretação da atriz Miriam Freeland; Tarsila do Amaral (Eliane Giardini) creditando a criação da pintura Abaporu, fruto de intenso raciocínio estético, a epifanias, acasos ou coisa que o valha; o duo literário dos Andrade, Mário (Pascoal da Conceição) e Oswald (José Rubens Chachá), comportando-se qual comadres birrentas para traduzir na telinha a montanha-russa temperamental que foi seu relacionamento. Qualquer um desses excessos esteve em um ou mais capítulos da minissérie Um Só Coração, exibida há exatos dois meses pela Rede Globo. Protestos inflamados da comunidade artística por conta dos exageros? Nem tanto.

“É preciso lembrar que estamos assistindo a uma novela e, portanto, respeitar os elementos de ficção, as metáforas criadas pelos autores”, diz Elza Ajzenberg, diretora do MAC-USP (Museu de Arte Contemporânea), sede de boa parte das pinturas que são reproduzidas na minissérie escrita por Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira.

No museu paulistano encontra-se, por exemplo, A Negra, tela de Tarsila do Amaral que tem funcionado como ímã de público num período de estiagem na visitação (entre janeiro e março).

Elza afirma que são comuns os visitantes que entram no espaço, vislumbram A Negra e partem sem sequer apreciar outras obras. Comentário constante entre os adeptos desse plano de fidelidade: “então é esse o quadro que apareceu na minissérie!”.

Em vez de militar na oposição, Elza prefere salientar as virtudes de Um Só Coração. Cita as homéricas A Odisséia e A Ilíada para exemplificar que, muitas vezes, a ficção tem a serventia de roteiro para guiar estudos históricos.

Elogia também as representações de Yolanda Penteado (Ana Paula Arósio) e Ciccillo Matarazzo (Edson Celulari). “A novela assinala um alvo certeiro para a cultura moderna brasileira: o papel tanto de Ciccillo quanto de Yolanda para o mecenato das artes”. Na sua opinião, a atuação do casal na ficção funcionaria como um eficaz despertador entre a elite nacional, para que esta invista com mais assiduidade no patrimônio artístico.

O crítico Enock Sacramento, autor de um livro sobre vida e obra do pintor andreense Luiz Sacilotto (1924-2003) e que prepara outro sobre João Suzuki, confessa não assistir a Um Só Coração com a freqüência de um noveleiro. Opiniões, no entanto, ele já tem, a partir do pouco que viu. “Não se trata de um documentário, é uma criação livre que busca referências na realidade. Apesar disso, acho um trabalho importantíssimo por alcançar milhões de pessoas, que podem se interessar pelo assunto e procurar livros e exposições para descobrir mais sobre esse período.”

Fonte – Um período farto de acontecimentos determinantes para a história brasileira, diga-se. Nos planos de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, Um Só Coração começa nos fatos concernentes à Semana de Arte Moderna, em 1922, e desagua em 1954, ano do quarto centenário da cidade de São Paulo e pelo qual estendeu-se a 2ª Bienal de Arte de São Paulo.

No miolo, foram, estão sendo ou serão descritos eventos como a ruína da Bolsa nova-iorquina em 1929, a crise entre os produtores de café, a Revolução Constitucionalista de 1932 etc.

E, em primeiro plano, o bofete que os modernistas de São Paulo aplicaram na arte brasileira. A principal fonte de consulta dos autores, seja para conhecer o gestual de Anita Malfatti (Betty Goffman), seja para saber qual o desenho das molduras nas exposições de 80 anos atrás, é Denise Mattar, crítica e curadora de retrospectivas de Di Cavalcanti e Ismael Nery, entre outras.

Tudo o que diz respeito a artes visuais e seus criadores em Um Só Coração é submetido ao crivo de Denise. Atualmente, ela tem trabalhado de forma intensa na reprodução do ambiente da 2ª Bienal, evento que arrematará a trama.

Na recriação, está programada a exibição de uma réplica da monumental Guernica, obra de Picasso que foi a jóia da coroa na mostra realizada em 1953 e 1954.

Refazer um Picasso não é por enquanto a maior dificuldade de Denise no trabalho de pesquisa. “Difícil mesmo foi encontrar obras do (pintor) Valdemar Belisário para montar sua exposição na minissérie. Só fui achar alguma coisa com a Secretaria de Cultura de Ilhabela, onde ele morou, que tinha um catálogo completo”.

Produzir esse fac-símile de Guernica poderia ser o desafio mais emocionante, pelo menos? Não. “A maior emoção foi imitar a montagem da exposição da Semana de 22, no Theatro Municipal, que não possui nenhum registro fotográfico. Conseguimos e foi uma coisa fantástica, uma delícia”.

Daqui por diante, o foco também estará na fundação do Masp (Museu de Arte de São Paulo), em 1947, por Assis Chateaubriand (Antônio Calloni), e do MAM-SP (Museu de Arte Moderna), em 1948, por Ciccillo. “Dois dos museus mais importantes da cidade foram erguidos, segundo diz o folclore, num duelo amoroso entre os dois (Ciccillo e Chatô) para conquistar o coração de Yolanda”.

Eis um ponto em que concordam a lenda e o folhetim: só o amor constrói.




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