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Vida por trás da lona
Andréia Meneguete
Diário do Grande ABC
07/11/2010 | 07:22
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Orlando Filho/DGABC


A música "Na Carreira", de Chico Buarque e Edu Lobo, serve como inspiração para esta repórter que está prestes a desvendar as curiosidades e estigmas que perduram sobre a rotina daqueles que vivem no circo. É manhã de uma quinta-feira de outubro, cerca de 200 crianças na plateia aplaudem e se despedem dos circenses após um envolvente espetáculo no bairro de Vila Prudente, na divisa entre São Caetano e São Paulo. A vida dos pequenos estudantes continua e as dos artistas dali também.

Depois de show com duração de 90 minutos, é hora de voltar para todos os afazeres que ficaram à espera bem perto dali, a 20 metros, atrás da lona. Nada de descanso ou moleza: o trabalho doméstico aguarda a trapezista paulistana Rane do Vale, 28 anos, que tem uma família circense para cuidar.

Primeiro, seguindo a prioridade da sua lista, o almoço do filho de 8 anos, Richinha, como é chamado na comunidade onde vive. E a atenção desta mulher se desdobra para atender ao marido, Richard Guedes, 31, que chega faminto após a rotina estressante de trabalho, entre um salto e outro nos ares.

 

Na verdade, a moça se desdobra entre panelas e ingredientes, assim como qualquer mulher que vive num apartamento com cozinha pequena. A rotina dela não deixa nada a desejar em relação à sua, ocupado leitor. Compromissos e responsabilidades se espremem nos horários concorridos de um dia turbulento.

Na mesa da cozinha, um laptop para poder se atualizar com as notícias do mundo lá fora e, ainda, conferir os e-mails pessoais - forma de manter contato e matar a saudade das pessoas queridas que estão distantes.

Quem a vê nessa função tão fraterna não imagina que ela estará, em poucas horas, novamente no picadeiro, em cima de trapézio, pulando de um lado para o outro junto com o seu marido.

São poucas as vezes em que o filho fica de fora da programação do espetáculo. Richinha trabalha como comediante, junto com outros artistas, em um dos números da apresentação e tem a responsabilidade de arrancar sorrisos dos espectadores. "Crianças têm a proteção da lei para atuarem no circo. Na verdade, elas são aprendizes que estão aqui para aprenderem a arte que os pais têm. Trabalham quando querem. O circo para elas é um mundo lúdico e uma referência para a vida", explica Marlene Querubim, 50, fundadora e diretora do Circo Spacial.

 

Pasme! Longe do picadeiro, Richinha é uma criança tímida e desconfiada, que demorou um tempo para cair na conversa desta jornalista.

 

De segunda a sexta-feira, das 13h às 18h, ele exerce papel de estudante. Uma lei assegura o direito da criança que vive no circo a ter cadeira cativa em qualquer escola próxima aonde o circo se encontra.

Exemplo de que a rotina e a falta de um endereço fixo não atrapalharam o desempenho do pequeno artista são as conquistas em território escolar. CW-15"Recentemente, ele ganhou um prêmio de Honra ao Mérito como um dos melhores alunos da sala. Os requisitos eram assiduidade, boas notas e interesse em sala de aula", revela Hane, com um imenso sorriso no rosto, muito orgulhosa de sua cria. O reconhecimento do artista mirim do circo ultrapassa as salas de aula e chega à esfera cultural. Neste ano, o acrobata Matheus Felipe de Jesus Silva, 13, recebeu o prêmio Artista do Ano concedido pelo Ministério da Cultura.

 

O resultado deve-se à atuação em cima do palco e ao objetivo de se tornar um profissional respeitado no futuro. "Treino três horas por dia e nunca deixei de estudar por causa da minha rotina. Ir bem na escola é uma exigência da minha diretora", afirma Matheus. E como todo bom profissional, o adolescente também garante seu salário, que não foi revelado, a cada semana. "O dinheiro passa pela minha mão, mas entrego o envelope do meu pagamento para a minha mãe tomar conta", explica.

 

 FINANÇAS - Esqueça se por algum momento você pensou que a vida no circo seria diferente no que se refere à questão financeira. As cifras para manter uma lona são desafiadoras e os salários, bastante atrativos. O aluguel do espaço de um circo de grande porte, por exemplo, pode chegar a R$ 30 mil por mês.

A justificativa é simples: "Temos dificuldades para encontrar terreno que comporte a nossa estrutura; que tenha sistema de água e luz para que tudo funcione conforme desejado. A escassez gera uma valorização do espaço", explica Humberto Paulino Pinheiro, 27, diretor responsável pelo Circo Di Napoli.

Os gastos de um empresário do ramo não param por aí. A folha semanal varia de R$ 12 mil a R$ 14 mil, entre salários de funcionários, manutenção de equipamentos e limpeza do espaço.

 

"Na mudança do circo da cidade de Balneário Camboriú, no Sul do País, para Registro, no interior de São Paulo, gastamos em torno de R$ 17 mil só com pedágio, alimentação, combustível e funcionários", revela Pinheiro.

Todo o lucro vem de bilheteria, com valor médio de R$ 30 o ingresso, e das vendas de brinquedos, acessórios, fotos e alimentos. Segundo Marlene Querubim, fundadora e diretora do Circo Spacial, a renda de cada funcionário varia entre R$ 250 e R$ 2.500 por semana. "O salário é de acordo com a função de cada um aqui dentro. Cada artista tem um preço. E o valor pode aumentar conforme a dedicação e o esforço", explica.

 

No quesito lar, não dá para fugir: há cifras e despesas para manter a família. "Gastamos cerca de R$ 200 por semana com alimentação, entre outras coisas para a casa. A água e a luz o circo fornece para nós", revela Richard Guedes.

 

 VIDA COMUM - Acordar às 6h da manhã, estudar, trabalhar, produzir uma monografia e ainda ter tempo para namorar. Enumeração de atividades típicas de um jovem de classe média da cidade. Estilo de vida comum também para os jovens que vivem no circo. Assim como é a rotina de Carolina Rigoletto, 20 anos, que desenvolve todas as atribuições acima listadas com louvor e longe de qualquer reclamação. O fato curioso é que a jovem vive no circo desde quando nasceu.

 

Ela pertence à quinta geração de uma tradicional família circense. Seu pai é o famoso palhaço Pingolé; sua mãe, uma acrobata apaixonada pelas alturas e manobras arriscadas que realiza pendurada num tecido.

Até os 15 anos, Carolina revela que a arte circense não lhe cabia e muito menos a atraía, pois o medo de altura e a pouca afinidade com a comédia dificultavam a escolha. Mas foi no jovem Tiago Oliveira, 20, que veio de uma escola de circo e de uma família totalmente urbana, que a jovem reconheceu a sua paixão.

 

"Ele chegou no circo e começou a treinar malabares. Eu ficava olhando e admirando. Até que um dia me propus a aprender a modalidade", explica. Resultado? Hoje, a jovem, com apenas 20 anos, é uma das únicas mulheres a trabalhar com seis clavas.

 

As consequências não pararam por aí. Carolina e Thiago mostraram bons resultados no picadeiro e hoje fazem apresentação juntos em todos os espetáculos. E o melhor: viraram namorados e já fazem planos para uma vida a dois. Acontecimentos do destino.

LONGE DA RUA - "Quando passei pela rua e olhei a lona ali erguida bem na esquina, vi a oportunidade de evitar que mais um filho meu fosse tirado de mim pelas drogas", afirma a diarista Silvana Gonçalves de Araújo, 44, moradora da comunidade Mata Virgem, em Diadema, referindo-se à chegada do projeto social Circo Escola à cidade que ocupa a sétima posição do ranking estadual de violência, com 136 homicídios em 2007, segundo a pesquisa Mapa da Violência no Brasil, apresentada neste ano pelo Instituto Sangari.

 

 Investimentos em projetos sociais como este, na área cultural, são capazes de reduzir os índices de marginalidade na região, além elevarem as expectativas das pessoas com pouco poder aquisitivo que não acreditavam num futuro melhor e mais promissor.

 

 "A linguagem circense é capaz de promover não só o movimento do corpo. Com as aulas de circo, o aluno é capaz de resgatar a autoestima, melhorar a qualidade de vida e a saúde, além de muitas vezes oferecer um caminho profissional", salienta Roberto Tápia, 33, que pertence a uma família circense e é coordenador técnico do Circo Escola Diadema.

 

 A atuação do circo na comunidade é realmente tão efetiva que o filho de dona Silvana, Lucas Matheus de Araújo Vieira, 14, revela: "Quero ser profissional, viajar por todo o País". Parece que o desejo da mãe - que há um ano tinha medo do envolvimento da cria com as drogas - foi atendido.

 

 O envolvimento do adolescente com o projeto foi tão grande que outros membros da família foram convocados a fazer parte do picadeiro. "Meu filho se apaixonou tanto por este mundo que obrigou que eu e minhas netas também participássemos das aulas. Agradeço todos os dias por isso", afirma a diarista.

 

 O universo circense não se limita somente a crianças e adolescentes. Exemplo bem vivido disso fica por conta de dona Fenícia Crivellaro Mota, 80, que descobriu uma outra vida na terceira idade. "O maior medo dessa senhora era entrar no picadeiro. A primeira vez em que pisou, chorou", lembra a diretora do projeto, Viviane Tápia, 37.

 

 Após os obstáculos e medos vencidos, dona Fenícia hoje já conduz com aptidão as modalidades de aramismo e malabares. "Isso sem contar que ela está mais disposta e saudável", observa Viviane.




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