O homem dorme debaixo da marquise. Certamente a cachaça presta auxílio inestimável aos trapos e ao papelão que lhe cobrem o corpo em frangalhos. Vida dura esta de dormir ao relento. A sujeira também comparece com sua parcela de contribuição quando os termômetros batem os seis graus. A existência soa mesmo desumana para o homem, que é humano.

Aquele que vai no ônibus, embora não admita, desfruta de conforto e segue, cheio de ansiedade por chegar à casa e se refugiar. Quem sabe chuveiro, sopa quente, e boas cobertas estejam à sua espera. Mesmo assim reclama tanto quanto pode da precariedade do transporte público. Sujeito consciente dos seus direitos, tal qual o que vem de carro, aporrinhado com o trânsito cruel. É provável que não critique veemente a existência cheia de percalços. Até porque, o interior do veículo permite apreciar comodidade melhor com a temperatura tépida, volta e meia, acompanhada de boa música. Mesmo assim se angustia, ao pensar que seu dinheiro só lhe permite possuir carro básico sem os requintes encantados que a mídia torna irresistíveis.

Já aquele que faz o trajeto com um pouco mais de luxo, muitas vezes se vê contrariado com as chateações cotidianas comuns ao outro, como o complicado engarrafamento. E outras não tão comuns como o vinho sugerido pela loja cara que não dispunha da safra desejada. Duvida até que este caia bem no jantar. Fazer o quê? Preocupa-se também com a jóia que comprara sem saber se é do gosto da mulher... Ou da amante. Como estará o tempo em Paris no final de semana, é outro tormento que lhe preocupa sobremaneira.

O vento e a chuva fina são companheiros fiéis quando o inverno é senhor e tempera as diferenças. Ao ser fustigado pelas ruas, o pedestre tem a nítida impressão de que tudo deve ser assim, de que não há um sol brilhando em alguma parte do mundo, atrás dele, ou na vida de alguém. Sentimento que se intensifica ao cair da noite, quando as sombras realçam a friagem e ainda conferem aquele toque de desolação.

Mas o clima é mesmo engraçado nesta terra cheia de gente que passa frio no exato instante em que seu irmão se refestela no calor intenso. No verão, a enchente afoga as pessoas bem diante do nariz da câmera que leva a imagem ao sertão que já esqueceu o doce perfume da chuva caindo no terreiro. Umidade ali, só se vier da lágrima que rola simultaneamente ao aguaceiro, soberano lá adiante. Parece até que o território nacional está inclinado, com o semi-árido alguns graus acima, fazendo a água escorrer para baixo.

Salve! Terra imensa de contrastes tais que fazem sonhar com o inverno de Copacabana onde a moça exibe toda a saúde a ela concedida pelo Criador em momento de suprema inspiração. Os poucos panos que lhe cobrem o corpo é tudo o que necessita quando a temperatura bate os trinta graus na areia da praia. Sol ingrato este que visita um lugar e se esquece do outro em que luva, cachecol e demais acessórios são adornos indispensáveis para fazer frente à massa de ar que o pólo carinhosamente enviou. Neve e gelo para esquimó algum botar defeito, dão ao povo a oportunidade única de fazer boneco! Tudo no mesmo país, na mesma hora.
Por certo que há de ter gente moradora de rua ali também. Que tipo de farrapo, papelão e pinga usa para driblar o frio, é o que ninguém imagina.

Sofrimento da mesma forma pungente experimenta o morador que viaja de ônibus, coitado, ou o pobre que só dispõe de carro popular. Todos padecem afinal, inclusive, aquele que acabou por pegar mal tempo em Paris.

* Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com.