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Ruy Castro reúne histórias sobre Ipanema em 'Ela é Carioca'
Do Diário do Grande ABC
17/11/1999 | 16:39
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"Eu tinha um encontro marcado comigo; mas, graças a Deus, nenhum dos dois compareceu", disse certa vez o escritor Fernando Sabino. Mesmo se tratando de uma confissao de caráter pessoal, Sabino pintou com essa declaraçao, com mais eficiência que a maior parte das definiçoes oficiais, o perfil e a alma de Ipanema, bairro síntese do espírito carioca no século 20. Descompromisso, desprezo pelos rituais severos, a alegria acima da agonia sempre foram as marcas de Ipanema. Em que outro lugar um psicanalista de prestígio, no caso o polêmico Eduardo Mascarenhas, sairia do consultório para, vestido apenas com uma sunga sumária, jogar frescobol com uma atriz famosa que, minutos antes, estivera deitada em seu diva? Onde mais uma tanga de crochê (na verdade uma calcinha de biquíni), vestida na praia por um ex-guerrilheiro, se tornaria o símbolo de uma abertura política?

"Se eu soubesse o que estou fazendo, nao faria", disse também o artista plástico Hélio Oiticica, outro filho da Ipanema clássica que, agora, nas maos de Ruy Castro, se torna tema de "Ela É Carioca - Uma Enciclopédia de Ipanema" (Companhia das Letras). E, de fato, na Ipanema dos anos dourados, fazer era mais importante que saber. O livro de Castro, porém, é composto de verbetes didáticos, exatamente como nas velhas Barsas que, nos anos 60, os estudantes de Ipanema consultavam para preparar os trabalhos do colégio. Só que, em vez de datas, genealogias e pedrigrees, eles estao cheios de histórias, histórias saborosas, dessas para ler na praia e passar adiante, como só Ruy Castro sabe contar.

Famosos e nao-famosos - Nessas histórias desfilam, como se estivessem passeando pelas dunas do píer ou escalando as pedras do Arpoador, desnudos e cheios de si, personagens célebres como Odete Lara, Vinícius de Morais, Gláuber Rocha, Leila Diniz, Paulo Mendes Campos, Paulo Francis, Jaguar, Regina Lecléry. Mas também nomes menos conhecidos como a jornalista, atriz e psiquiatra Germana de Lamare, o diplomata americano John Mowinckel (uma espécie de representante informal da CIA em Ipanema) e até mesmo o cachorro Barbado, que, nos anos 60, fazia ponto no bar Jangadeiro e tomava seu chope num prato.

Sempre interessado em atmosferas e cenários, Ruy Castro dedica verbetes também a bares, churrascarias, botecos, boates e sorveterias (como o Zeppelim e o Veloso, a Carreta, o Mau Cheiro o Monsieur Pujol e o Number One e o Moraes), a butiques como a pioneira Mariazinha, a personagens de cartuns (como Tânia, a que vivia na fossa), a lutadores como Sinhozinho, revistas como a "Senhor", e a territórios históricos como o Píer, o Sol e o Arpoador anterior aos sufistas.

Dos anos 20 aos 70 - Como ele mesmo avisa no mapa de Ipanema que abre sua enciclopédia, "Ela É Carioca" trata de uma certa Ipanema - aquela que existiu entre os anos 20 e 70, ficando quase tudo o que ocorreu desde entao de fora. Procedimento que, nas maos hábeis de Ruy Castro, transforma o saudosismo numa espécie privilegiada de sonho. Antes de tornar-se Tônia Carrero, e mesmo antes de ser Mariinha Portocarrrero, a atriz Tônia Carrero jogou vôlei, lutou jiu-jítsu, correu os 100 metros com barreiras e praticou ginástica rítmica. E mesmo quando se projetou no TBC nao a levavam a sério: viam-na como uma atriz inferior a grandes divas como Cacilda, Cleyde Yáconis e Nathalia Timberg.

Apesar de ser considerado até hoje um autor nebuloso e depressivo, o romancista Lúcio Cardoso, antes que um derrame cerebral o obrigasse a trocar a literatura pela pintura, foi o maior festeiro de Ipanema. É próprio dos mitos esconder, sob o fulgor da primeira imagem, o seu contrário, e Castro, nesse aspecto, age como um bom detetive. Além de exercitar seu talento inegável de grande contador de histórias, Ruy Castro trata também, como um enciclopedista carrancudo, de esclarecer coisas que parecem conhecidas, mas na verdade nao sao.

Rememora, pacientemente, dados da realidade que hoje parecem evaporados nas brumas do folclore, como a de que o píer, antes de ser o conjunto de dunas em que Gal Costa rolava com seus cabelos, era uma armaçao de ferro e madeira, instalada em 1970 na Praia de Ipanema, com estacas e tubulaçoes que avançavam mar adentro por 300 metros, para a construçao de um emissário submarino. Ou a de que o "Jô Onze e Meia", talk show do SBT que se tornou uma espécie de Ipanema no vídeo, tem o tamanho de 2500 programas, com 7.500 pessoas entrevistadas e que Jô, ao longo de 11 anos, jogou 5 mil beijos para a platéia.

E ainda que Jaguar, em seus primeiros 40 anos de trabalho na imprensa, produziu nada menos que 20 mil cartuns. Números, frios sem dúvida, mas que nas maos de Ruy Castro servem para reforçar os mitos.

Tudo é possível - Sem abandonar o gosto pela precisao e pelo detalhe, o melhor do livro de Ruy, no entanto, está nas histórias. Casos, revelaçoes, pequenas maldades que emprestam novos sabores a velhas lendas ou, ao contrário, ajudam a puxar de dentro delas esqueletos bastante incômodos. Mas em Ipanema, o livro de Ruy Castro nos faz ver, tudo é (ou pelo menos era) possível.

"Ela É Carioca" está cheio de provas. Quando submeteu o semanário "O Pasquim" à censura prévia, o regime militar escalou como censor ninguém menos que o general Juarez Paz Pinto que vinha a ser o pai de Helô Pinheiro, a "garota de Ipanema". Quando a dançarina americana Isadora Duncan, a primeira mulher a ficar nua em Ipanema depois dos tamoios, veio ao Brasil, seu cicerone foi Joao do Rio - um cidadao que, aliás, nunca tinha pisado além do Posto 6, em Copacabana.

Vinícius de Morais, considerado sempre "o homem típico de Ipanema", na verdade nao chegou a morar no bairro, somadas todas as breves temporadas, nem cinco anos. Embora tenha composto sua célebre "Garota de Ipanema", com Tom Jobim, nas mesas do bar Veloso (atual Garota de Ipanema, mas Castro prefere sempre os nomes antigos), Tom foi, tempos antes, proibido de tocar violao no bar, com a alegaçao de que, onde havia violao, havia também gente desclassificada.

Há ainda, ao pé dos verbetes, uma coleçao de pequenas frases que, mais que as histórias ou as revelaçoes, ajudam a reconstituir a atmosfera do bairro. Ao dizer "Nao sou inteligente; finjo que sou", Tônia Carrero estava descrevendo, na verdade, uma incômoda mistura de esnobismo e antiintelectualismo que sempre caracterizou a Ipanema clássica, reduto de poetas que se viam como boêmios e de boêmios que se viam como esquerdistas.

Futilidade - Nada mais ipanemense do que Scarlet Moon de Chevalier, pontificando num desfile de "roupas espaciais", ela que o próprio Castro descreve como "uma espécie de antologia ambulante de Ipanema e da pós-Ipanema", tendo como parceiro de passarela um jovem pintoso chamado Fernando Collor de Mello. Nao há reverência mais saborosa à futilidade do que o presidente JK escalando assessores para levar caixas de sorvete de jabuticaba direto das geladeiras da Sorveteria Moraes, na Visconde de Pirajá, para o Alvorada, em Brasília.

Nada mais anticonvencional, e mais incoerente com as regras clássicas do jornalismo, enfim, do que semanário "O Pasquim" levando 22 semanas para entrevistar Leila Diniz, na mais preguiçosa entrevista da história do jornalismo brasileiro - aquela mesma em que os 72 palavroes proferido pela atriz foram pela primeira vez, substituídos por asteriscos, o que seria uma marca do jornal, e da época.

Claro, sempre que isso é conveniente, Ruy Castro nao deixa de reproduzir, e alargar, alguns dos mais deliciosos mitos da história do bairro, como o de que o jornalista Tarso de Castro, um compulsivo criador de jornais, foi para a cama com todas as mulheres que desejou ou o de que Fausto Wolff, o impecável ficcionista, é apenas um valentao de bar.

Ipanema sempre foi assim, sempre pronta para mutilar ou exagerar, e Ruy Castro cede, algumas vezes, ao espírito do bairro. Há exagero maior do que a célebre sunga de crochê de Fernando Gabeira ter sido restaurada e depois doada ao acervo do Centro Cultural Banco do Brasil, onde ainda hoje está trancada num cofre? Perdidamente apaixonado por Ipanema, Castro às vezes alonga à força os limites do bairro e de sua fauna.

Ele inclui em sua enciclopédia, por exemplo, o poeta Carlos Drummond de Andrade, só porque ele passou seus últimos 40 anos de vida na fronteira de Copacabana com o bairro e às vezes passeava de tênis pela Praça General Osório, ou ia ao Jangadeiros, lá pelas 7 de noite, tomar um chope. Mas nao há paixao sem exageros e arroubos como esse só vêm emprestar mais charme ao livro de Ruy Castro. Ele será, sem nenhuma dúvida, pelo menos nas praias do Rio, o livro mais lido do próximo verao.




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