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Sem rotina, bombeiros driblam a emoção
Luciana Sereno
Do Diário do Grande ABC
25/01/2003 | 18:49
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São 7h30 de quinta-feira. Os soldados da prontidão da UR (Unidade de Resgate) 292 chegam ao quartel da Vila Alzira, em Santo André, e não têm idéia de como serão as próximas 24h. Os dois últimos plantões foram totalmente diferentes. Enquanto o penúltimo foi tranqüilo – eles até conseguiram ter uma noite de sono –, o último foi uma “pancada”, como definiu Luzídio ao apontar no corpo as partes doloridas. A equipe ficou na rua desde que chegou ao quartel até pouco mais das 22h. “Saí daqui colocando a calça da farda”, diz Luzídio, 29 anos. “Hoje, quem sabe, será mais calmo.”

De fato, a vida destes que são os super-heróis da população não é nada fácil. O principal desafio é trabalhar com a razão e deixar a emoção em casa. Estes homens, que carregam a morte como passageira constante na UR, têm a frieza como única receita para não enlouquecer.

Na ausência de chamada, o soldado Batista, 27, sobe para o alojamento. Está cansado. Na folgas, ele estuda enfermagem. Mas o descanso dura pouco. O rádio anuncia uma emergência. É pouco mais de meio-dia. A prontidão entra em ação. Enquanto Luzídio – o motorista – anota o endereço, Batista desce as escadas correndo, vestindo a camisa da farda. Nas mãos, traz a bota. A ação cheira adrenalina pura. Na UR, Batista imagina os procedimentos que poderão ser usados. Trata-se de uma vítima com queimadura. Com entrosamento e comunicando-se pelo olhar, os fiéis escudeiros pintam a cena mais feia que possam imaginar sempre que saem para uma ocorrência.

Acostumados com o cotidiano dos plantões, por vezes confessam se frustrar ao chegar ao local do socorro. “Se é um acidente de trânsito com vítima e, no local, vejo que só há um raspão na mão, fico frustrado porque não precisei usar as técnicas”, diz Batista enquanto se aproxima com cautela e conforta a cabeça da vítima entre as mãos. O soldado escolhe as palavras para acalmá-la e evitar que entre em choque. Eles enfrentam, ainda, quatro lances de escada carregando a vítima na maca. O trabalho da equipe se encerra ao entregar o paciente nas mãos de um médico do CHM (Centro Hospitalar Municipal), em Santo André.

De volta ao quartel, Batista reclama da meia incomodando. “É que coloquei as botas muito rápido.” Ele não imaginava o quão ágil ainda teria que ser naquele plantão. São 13h45 e o trio segue para o refeitório do quartel. O primeiro a se sentar é Batista. Antes da primeira garfada com as mãos juntas e olhos fechados, uma oração. Pode ser um agradecimento pelo sucesso da primeira ocorrência do dia ou um pedido para que até as 7h30 de amanhã tudo transcorra bem.

A refeição é quebrada por um novo chamado. O prato ainda cheio e os talheres são largados na mesa. Na escada, Luzídio lembra que esqueceu a farda no refeitório. A emergência é mais grave, precisará de apoio da AS (Auto-Salvamento) e das motocicletas. O suor escorre pela testa dos bombeiros. Não há dúvida de que o coração está a mil. Acelerado. Ao ouvir a sirene, Batista não segura e diz: “Essa sirene me arrepia até hoje”.

No local, é preciso ainda organizar o trânsito e os curiosos. Estes últimos, um transtorno para o trabalho dos bombeiros. “A gente tem de dar uma de surdo”, diz Luzídio. O motociclista está com uma fratura exposta. Um deles conforta a mãe da vítima. Na saída do CHM, 15h35, Batista, que engoliu apenas duas colheres de arroz e um pouco de salada antes de sair, diz que não vai mais almoçar porque já passou da hora. Talvez, na verdade, a fome não tenha passado de fato, mas, sim, tenha sido esmagada pelo cheiro do sangue e a imagem do osso exposto da vítima socorrida.

Eles ainda não chegaram à metade do plantão, mas os olhos já expressam o cansaço. Entre as ocorrências que ainda estão por vir, eles têm a limpeza do quartel, as aulas teóricas e de educação física e uma guarda de uma hora para enfrentar. Entre uma atividade e outra, podem se deparar com as vítimas “clientes” (já conhecidas de velhas ocorrências) e precisam estar a postos para dar informações, atender pedidos de comida e água e sorrir para quem vai ao quartel a fim de um passeio. Em casa, precisam driblar a ausência do lar e fortalecer laços afetivos para conseguir levar adiante o trabalho e o convívio familiar.




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