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Antidoping na polícia: discriminatório e inútil
José Carlos Pegorim
Da Redaçao
30/09/2000 | 18:24
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O secretário de Segurança Pública de Sao Paulo, Marco Vinicio Petrelluzzi, anunciou em um simpósio sobre modernizaçao e eficácia da polícia, realizado em meados do mês passado na capital, a introduçao de testes para uso de drogas (antidoping) e de integridade moral nas polícias Civil e Militar. Petrelluzzi chegou a dizer que o teste de integridade seria aplicado já na semana posterior ao evento, mas nem um nem outro foi posto em prática. Segundo a assessoria de imprensa da secretaria, os testes nao foram ainda regulamentados, mas deve haver novidades nesta semana.

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de Sao Paulo), ligado ao Departamento de Sociologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras), o sociólogo Luís Antônio Souza, 37 anos, trabalha há 12 anos com o tema segurança pública. Em 1998, apresentou na própria USP sua tese de doutoramento, Polícia e Investigaçao Criminal. Souza questiona a introduçao nas polícias de Sao Paulo do teste para consumo de drogas, chegando a considerá-lo um retrocesso - porque torna os problemas da polícia o problema dos seus indivíduos, em vez de vê-lo como da instituiçao. Mas é a favor dos testes de integridade moral - "ônus da profissao". De qualquer forma, para o sociólogo, toda essa questao afasta a discussao do seu verdadeiro centro: o poder discricionário da polícia.

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Diário - Submeter os policiais a testes para uso de drogas vai melhorar a polícia? Luís Antônio Souza - Esse tipo de exigência corresponde a padroes internacionais. Testes de integridade parecidos sao aplicados em várias polícias, e há entidades internacionais que trabalham para estimular a sua aplicaçao em agentes policiais. Mas, antidoping, nunca ouvi falar em outra polícia. Sobre o teste de integridade, considero que é um ônus que a profissao tem de carregar, e quem quer ser policial sabe que será submetido a ele. O teste antidoping é mais complicado: relaciona a idéia do uso da droga com a ineficiência e a violência da polícia, e nao há estudos que mostrem que isso é verdadeiro.

Diário - Mas é plausível... Souza - O que sabemos é que o uso de drogas e o uso de álcool levam pessoas que fazem trabalhos perigosos a ter maior propensao a cometer acidentes. Mas, no que diz respeito a ser mais ou menos eficiente ou violenta, nao há estatísticas. Depende muito das pessoas. Há quem use drogas e fique passivo. O tema é polêmico. Há outro problema: o da liberdade do indivíduo. É como exigir teste para Aids em pessoas que procuram emprego ou teste de gravidez para mulheres que estao sendo contratadas em companhias aéreas. Interfere na integridade da pessoa, na privacidade do sujeito. Duvido da legitimidade desse tipo de medida. Mas entendo a preocupaçao do Estado em tentar criar mecanismos de contençao da violência policial, e tendo a apoiar medidas que vao no sentido de contê-la.

Diário - Mas o secretário de Segurança, Marco Vinicio Petrelluzzi, apresentou o antidoping como prática da polícia norte-americana. Ele é menos comum do que se imagina? Souza - Sim. A polícia norte-americana é descentralizada, cada cidade tem a sua, e elas têm práticas diferentes. Nao dá para falar que o teste é usado "pela polícia norte-americana" - umas usam, outras nao. Mas nao há um estudo que diga que, com o teste, a violência da polícia em tal cidade diminuiu.

Diário - E por que adotá-lo? Souza - No Brasil, é no mínimo um casuísmo. O nosso problema, para usar uma terminologia técnica, chama-se poder discricionário: a ampla liberdade de açao que a polícia tem, tanto no que diz respeito ao policiamento cotidiano, de rua, quanto ao processo de investigaçao criminal e assim por diante. Como nao há controle - a Corregedoria exerce um controle muito precário sobre a polícia, e as chefias nao exercem controle algum -, há uma grande margem de atuaçao do policial. Ele pode fazer o que bem entender.

Diário - Como assim? Souza - Em termos concretos, estima-se que de 1/3 à metade dos policiais faça bico. Os maiores índices de pessoas mortas pela Polícia Militar e de policiais militares que sao mortos ocorrem nos bicos. Eles usam armas particulares no policiamento regular e armas que sao da corporaçao nos bicos, sem qualquer controle. É isso que precisa ser controlado. Se houvesse uma proposta para identificar os esquemas de tráfico dentro da corporaçao a partir dos policiais que usam droga pesada, entao, seria ótimo: que se faça o teste. Mas nao se sinalizou nessa direçao. Acaba-se penalizando o indivíduo, que é parte da instituiçao.

Diário - Mas os testes podem ser eficazes? Souza - Estamos falando de um universo de 130 mil policiais. O teste antidoping envolve custos que terao de ser bancados pelos cofres públicos. Obter resultados confiáveis exige laboratórios confiáveis. Melhor gastar dinheiro com coisas que se mostraram eficientes. Em relaçao ao teste de integridade, ele é necessário: quem usa uma arma tem, sim, de fazê-lo. O teste de drogas é mais complicado, envolvendo inclusive questoes constitucionais. E quem aplica o teste é isento?

Diário - Mas se propôs tratar os policiais que usam drogas... Souza - Se o tratamento é tido como uma puniçao para o policial, ele nunca vai se tratar. Ele perde o emprego e vira mais um desempregado às portas da criminalidade. Temos de responsabilizar os líderes. Se um policial agiu mal, o líder é quem tem de se responsabilizar: aí a instituiçao começa a mudar de comportamento. Porque a corporaçao vai sempre usar o argumento de que o problema sao os policiais maltreinados, o salário que é pouco. Pessoas que, como eu, trabalham com direitos humanos e segurança, sabem que os mecanismos de puniçao sao muito precários para mudar comportamento. O criminoso, por que é preso, deixa o crime, muda de comportamento? A puniçao nao corrige as pessoas. Se corrigiu antes, nao sabemos, mas, hoje, certamente nao corrige. Hoje se tem de pensar em estratégias positivas de estímulo para o policial nao se envolver com drogas, nem com criminalidade e nao cobrar propina.

Diário - Policiais consideraram o exame vexatório, ilegal e demagógico: o antidoping cria uma cortina de fumaça. O senhor concorda? Souza - Concordo, mas por motivos completamente diferentes. Eles estao fazendo uma defesa corporativa. Mas, no que diz respeito às questoes constitucionais e a considerar o exame vexatório, concordo. Ele é invasivo e feito contra a vontade da pessoa. Teria sido preferível discutir soluçoes mais arroz-com-feijao.

Diário - O que o senhor chama de arroz-com-feijao? Souza - É, por exemplo, criar apoio psicológico para os policiais, que praticamente nao existe - e isso num país onde há centenas de psicólogos desempregados.




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