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FAR-15 dança ‘O Processo’ em casa nova
Mauro Fernando
Do Diário do Grande ABC
31/10/2003 | 20:43
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Sandro Borelli às voltas com o universo kafkiano. Depois de levar para o palco A Metamorfose, no ano passado, o coreógrafo e bailarino andreense volta à carga com o Grupo FAR-15 a partir deste sábado com O Processo, espetáculo inspirado no livro de mesmo nome de Franz Kafka (1883-1924). A montagem inaugura o Viga Espaço Cênico, onde a companhia, da qual Borelli é o diretor artístico, fixa residência.

Escrito entre 1914 e 1915, o livro permite diversas leituras, umas com ares de denúncia, outras com de presságio – o poder manipulador, o controle estatal sobre o indivíduo, a solidão, o vazio de sentido da vida contemporânea. Borelli joga luz sobre o sentimento da culpa.

Há cinco anos no grupo, o bailarino Roberto Alencar fala no “ser humano acuado, que está fora do mundo e quer entrar mas não consegue”, na “pessoa como num pesadelo presa num labirinto, cada vez mais perdida”. “O homem que carrega uma culpa original sem saber exatamente o porquê”, enfim. Para a bailarina e diretora geral da companhia, Sônia Soares, “a relação do homem com a culpa é libidinosa, ele se atrai por ela e não consegue viver sem ela”. “Kafka aborda a culpa que justifica o medo presente na sociedade judaico-cristã”, afirma Borelli.

Protagonista do livro, Joseph K. acorda na manhã de seu 30º aniversário e recebe voz de prisão sem conhecimento do que é acusado. Mantido sob o domínio de autoridades estranhas, que não se identificam, recebe pressões de um juiz misterioso. Por fim, é condenado e executado sem saber porque nem por quem.

Na montagem da FAR-15, K. surge no palco “dando depoimento para o tribunal, que é a platéia”, diz Borelli. O público, pois, é o juiz. Como o trabalho da FAR-15 pressupõe forte expressividade teatral, os intérpretes de K. sussurram o texto, sem que os espectadores entendam o que se fala. “K. fala com ele mesmo, e isso gera uma tensão no público, que tenta entender mas não consegue”, afirma. “Também é uma metáfora da incomunicabilidade”, diz Alencar.

Sônia está em cena sem encostar os pés no chão, perambulando pelas costas dos bailarinos. Esse peso “representa o sistema, a culpa, a impotência, a opressão”, afirma Borelli. A burocracia – estrutura pela qual medíocres exercitam com mesquinhez algum tipo de poder –, o Estado repressor e a religião castradora também são sinônimos para tal fardo.

A coreografia aposta em elementos cubistas. Os intérpretes podem ser vistos de diferentes ângulos, “como imagens deformadas da mesma pessoa numa casa de espelhos”, diz Borelli. Essa concepção reforça a condição extrema em que K. se encontra. Sônia adverte: “O próximo K. pode ser você”. A montagem, então, se coloca como reflexo do homem atual. “Kafka é genial por causa disso. Somos personagens dos romances dele. Quando acordo já há um mundo me oprimindo. Todos temos esse tipo de sensação, alguns mais e outros menos”, diz Borelli.

Essa postura crítica, o coreógrafo a carrega desde sempre: “Cada um tem de dizer o que acha que tem de ser dito. Mas não quero dizer que o discurso da FAR-15 é o mais relevante. O importante é ter um discurso, ter princípios ideológicos e não só artísticos”.

O grupo já pensava em O Processo, seu oitavo espetáculo, quando montou A Metamorfose, o que dá um caráter de continuidade à mais recente criação de Borelli. Neste ano a companhia estreou Kasulo, que também aborda o universo kafkiano, em Santo André. “O Processo contém um pouco da vida e da obra de Kafka”, afirma Borelli. Diogo Dalmagro, Marcos Suchara, Paulo Vinicius, Renata Aspesi e Veridiana Zurita, além de Alencar, Borelli e Sônia, compõem o elenco.

O Processo – Dança contemporânea. Coreografia de Sandro Borelli. Com o Grupo FAR-15. Sextas e sábados, às 21h, e domingos, às 20h. No Viga Espaço Cênico – r. Capote Valente, 1.323, São Paulo. Tel.: 3801-1843. Ingr.: R$ 15. Até 7 de dezembro.




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