Setecidades Titulo Regularização fundiária
Moradores do Centreville só vão comemorar 'vitória' após posse de escrituras

CDHU aprovou que Prefeitura entregue titularidades às famílias, sem custo, até o fim deste semestre

Bia Moço
Do Diário do Grande ABC
23/01/2020 | 17:39
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Nario Barbosa/DGABC


Moradores do bairro Centreville, em Santo André, falaram em “grito de vitória” após serem notificados de que a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) deu aval para que a Prefeitura entregue a titularidade das moradias às famílias, sem qualquer custo à população. Embora sintam que estão cada vez mais perto de ver o fim da novela que perdura há 37 anos em suas vidas, ainda dizem estar reticentes quanto ao anúncio, e preferem aguardar ter os papeis em mãos para então comemorar. O cuidado, segundo comentam, se deve ao fato de terem amargado decepções com promessas idênticas não cumpridas no passado.

Segundo os moradores, a história de luta pela regularização fundiária do bairro já os deixou “calejados”, mas desta vez a sensação é de que “a guerra acabou”, conforme explicou a presidente da Associação União e Luta dos Moradores do Centreville, Marilda Brandão, 45 anos.

“Cheguei aqui (Centreville) com 8 anos de idade. Vi meu pai, Messias Carneiro de Moura, dar início na associação, ao lado de Batista Lemos, presidente da entidade na época. Foi lá atrás que começou a nossa luta e somente agora, enfim, teremos o que é nosso por direito”, vibrou Marilda.

Para o marido de Marilda, Edilson Lesso Brandão, 58, conhecido como Nenê, a "briga foi boa" e parecia não ter fim. “Todo ano escutávamos promessas de políticos, especialmente em época de campanha. E depois nada saía do papel. Desta vez foi surpreendente ver que, de fato, o governo lutou por nós”, exaltou.

Moradores mais antigos disseram que não acreditavam mais em solução para a área, até que a notícia chegou a eles, no domingo. Mãe da presidente da associação e moradora inaugural do bairro, Joselita da Silva de Moura, 74, promete festa quando toda a população estiver com a documentação em dia. “Foi uma luta árdua da associação e devemos essa conquista a eles, líderes que estiveram à frente pela comunidade. Estou muito feliz”, comemorou Joselita.

João Alves da Silva, 82, também foi um dos primeiros ocupantes da área, junto com o pai de Marilda. Para ele, as duras lembranças de dificuldade estão prestes a ter fim. “Fico pensando em quando cheguei aqui, que não tinha água nem luz, e como foi difícil construir e fazer nossa vida. Nem acredito que, enfim, vou dormir tranquilo”, comemorou.

Chamada carinhosamente de Dona Bia pelos vizinhos, Severina Martiniano da Silva, 75, contou à reportagem que ao receber a notícia, caiu de joelhos no chão e agradeceu. “Vim para cá com quatro filhos, sendo que duas eram deficientes. Ia até a Vila Pires, na casa da minha irmã, para lavar roupa. Saí de um aluguel que pagava 10 cruzados (moeda da época) para lutar pela minha casa própria”, relembrou.

Morador do bairro há cerca de 32 anos, Adilson de Souza Caçula, 56, chegou no Centreville quando a situação já era melhor, em questão de estrutura. “Pensei, por vezes, em desistir desta briga. Mas os moradores não podiam deixar o erro persistir para as próximas gerações. Marcaremos história por essa luta, em breve, vencida. Fico honrado em ter meu nome na lista da associação e ter, ao lado de tantos, lutado por essa conquista”.

Embora ainda prefiram esperar, os moradores afirmam que já sentem o "coração mais calmo". A população, como um todo, se diz grata à associação, e à Prefeitura. Para os moradores do Centreville, a história da ocupação está prestes a dar início a um novo capítulo, o qual esperam que seus filhos e netos possam contar com um final feliz.


Condomínio de luxo que deu errado, ocupação é marco na história do País

Considerada a primeira ocupação de sucesso no Brasil, o Centreville marcou história com 37 anos de luta pela regularização fundiária do bairro. As primeiras 539 moradias de arquitetura alemã, semi-construídas em ruas de paralelepípedo, dariam vida a um condomínio de luxo, baseado nos padrões do que hoje é Alphaville, em Barueri.

As obras tiveram início em 1973, no entanto, quatro anos depois a construtora Nova Urbes faliu e abandonou o projeto. Inconformados, os futuros moradores, que já tinham pago montante para construção de quatro lotes residenciais, perderam tudo.

Ainda na época da ditadura militar, representantes da Igreja Católica e do PC do B – partido comunista que estava iniciando no País – tomaram a decisão, em reuniões organizadas pelas associações de bairro da Vila Guaraciaba e da Vila Vitória, de ocupar as casas abandonadas.

Na época, Tarcísio da Silva Calé, foi um dos militantes a dar início na ocupação. Ele esteve à frente da Associação União e Luta dos Moradores do Centreville até 2017. O nome do líder comunitário, entretanto, continua sendo falado e respeitado, diante da sua história de resistência pelo Centreville. O Diário não conseguiu contato com Calé até o fechamento desta edição.

Atual presidente da entidade, Marilda Brandão relembra que, quando pequena, militares invadiam as casas em busca dos militantes que estavam à frente do partido e associação. “Lembro de que as crianças faziam corrente em frente a cavalaria cantando músicas de protesto, enquanto as mães estavam atrás, e os pais vinham na sequência com armamento para defender nossas casas. Nunca fraquejamos”, se orgulha.

O passar dos anos acabou com a invasão de policiais, mas não com a angústia de, a qualquer momento, ficar na rua. A comunidade lembra que a cada novo mandato de prefeitura, uma nova esperança ressurgia. Passados quatro anos ou mais de cada gestão, mais promessas e nenhuma resolução.

A líder comunitária ressaltou que em meados de 2016, no fim da gestão do então prefeito Carlos Grana (PT), foi a primeira vez que a comunidade viu a "briga" com o governo começar a sair do papel, entretanto, o processo de regularização foi travado.

No ano seguinte, em 2017, a CDHU anunciou que entraria em acordo com a população para liberar as escrituras. Na época, as famílias não teriam de arcar com o valor da edificação erguida, apenas com o custo do lote. Os moradores receberiam um subsídio, de acordo com a situação econômica de cada um. Quanto menor fosse a renda familiar, maior seria a subvenção, que poderia chegar até a 85% do valor do lote. O montante poderia ser financiado em até 30 anos, com taxa de juros de 4% ao ano, além de que todos os impostos e taxas estariam inclusos no financiamento, bem como o seguro.

A proposta, entretanto, não foi aceita pela população, tendo aderência de somente 17 famílias, que terão de buscar com a Justiça a melhor forma para resolver a questão, já que os acordos foram assinados.

“Queriam (CDHU) que a gente pagasse por algo que já era nosso por direito. Iriam tirar tudo dessa gente, que já não tem muito. Como é que os idosos, que ganham aposentadoria de um salário mínimo, iriam pagar um acordo destes? E caso não fosse pago, seriam despejados para onde? Não dava para aceitar”, explicou a presidente da associação.

Fora isso, Marilda ressalta que toda a estrutura foi construída com o “suor” de cada um dos moradores. Não seria justo, segundo ela, pagar por algo que foi erguido com as próprias mãos, após o que chama “de maior golpe já visto na história de Santo André”, quando o projeto foi abandonado semi começado.

Atualmente o Centreville, em sua totalidade, é dividido em quatro áreas. A primeira delas a se formar, em 1982, conta com 250 mil m² e cerca de 10 mil moradores.

“Vamos juntos soltar o grito de vitória entalado na garganta há 37 anos. Muitos dos nossos líderes, sobretudo àqueles que deram início na luta, já se foram. E em memória deles vibraremos esse momento com uma festa ao nosso modo, em união”, afirmou Marilda.




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