Política Titulo Entrevista da Semana
A violência contra a mulher não é problema privado’
Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
23/09/2019 | 07:51
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Claudinei Plaza/DGABC
Claudinei Plaza/DGABC Diário do Grande ABC - Notícias e informações do Grande ABC: Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra

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Santo André ganhou, em 31 de agosto, o primeiro Anexo de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Grande ABC. Instalado no Fórum, o serviço visa prestar atendimento qualificado às vítimas de violência doméstica. Responsável pela unidade, a juíza Teresa Cristina Cabral Santana destaca que somente a atuação em rede é capaz de combater essa situação, que é de toda a sociedade. “É um problema de Estado, uma violação de direitos humanos e na medida em que isso acontece, todos nós como sociedade, como cidadãos, como família, devemos nos responsabilizar por isso. E isso significa meter a colher”, declarou.

Qual o objetivo do Anexo de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher?
A intenção em se ter unidades especializadas para o trato dessa questão da violência de gênero, doméstica e familiar contra a mulher é a especialização do serviço e a maior possibilidade de trabalho em rede. Com essa instalação, que é preconizada e prevista pela Lei Maria da Penha, a ideia é que os serviços sejam não de melhor qualidade, mas de melhor qualificação e compreensão do que é a violência contra a mulher, entender os meandros, os limites, as possibilidades que são colocadas para essa mulher, a possibilidade maior e melhor de ela ser inserida em políticas públicas de atendimento e acolhimento, e também com relação ao autor da violência, a possibilidade de ele também ser inserido em alguma política pública que venha proporcionar a oportunidade de reflexão sobre a questão da violência.

A região não conta ainda com nenhuma DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) 24 horas. Qual o prejuízo para as ações de combate à violência em decorrência da ausência desse serviço?
As violências normalmente acontecem nos fins de semana e no período noturno, então ter um serviço especializado que funcione 24 horas é muito importante. Não somente a delegacia, mas também a possibilidade de serem encaminhadas para casas abrigo, casas de passagem. Serviços que funcionem com acolhimento institucionalizado 24 horas também são importantes para que essa violência possa ser diminuída, então o prejuízo é grande.

A Lei Maria da Penha prevê que mulheres em situação de risco possam ser beneficiadas com medidas protetivas, mas, na prática, muitas continuam sendo vítimas. Como tornar essa proteção mais efetiva?
É importante nunca desistir do pedido de medida protetiva. Na maior parte dos casos as medidas funcionam na prevenção da violência, mas há situações que são muito sérias, em que o ciclo da violência está presente de maneira muito intensa, são muito graves e que a simples concessão da medida protetiva não basta. É necessário implementar medidas de fiscalização e avaliação de risco. Avaliando o risco a que essa mulher está submetida, a gente consegue fazer o encaminhamento necessário. Para algumas delas, só a concessão da medida protetiva não é o suficiente. É necessário encaminhar para um abrigamento, decretação da prisão preventiva do autor da violência, outras medidas mais contundentes.

Do ponto de vista da atuação do Judiciário, o que mudou após a inclusão do feminicídio no Código Penal?
A inclusão veio tirar da invisibilidade um fenômeno que fazia parte da nossa cultura há muito tempo, mas com a nomenclatura a gente passou a falar mais disso. A morte da mulher por ser mulher. Isso também proporcionou que novas ações fossem efetivadas no sentido de maior qualificação e formação de profissionais para analisar. Porque a violência de gênero é diferenciada. Para a gente conseguir fazer uma política pública que venha tratar do tema, a gente tem que se especializar, não há outro jeito. Então, com essa situação a gente passou a olhar o problema de outra forma, passou a tornar possível que as estatísticas acontecessem, a gente precisa medir o que estamos fazendo, o tamanho do problema se a gente quer políticas públicas de erradicação. E também para que esses profissionais fiquem mais atentos a essa problemática e possam fazer um direcionamento melhor e mais consistente, inclusive na investigação.

O Grande ABC registrou, apenas neste ano, nove casos de feminicídio e uma tentativa. De 2016 a 2018, esse tipo de crime aumentou 33% na região, passando de 24 para 32 ocorrências. De que forma esse anexo pode ajudar a conter esse tipo de crime?
O feminicídio é o que chamamos de fato evitável, porque, uma vez a gente se dando conta de que há uma estrutura em que o ciclo da violência está presente, ele vem em um crescente e a gente, conscientizando essa mulher de que ela está sendo submetida a uma situação de violência, procurando na medida do possível fazer uma intervenção mais precocemente, é possível evitar que um mal maior aconteça. A ideia é fazer com que o funcionamento da rede proporcione isso. Um só órgão não consegue, sozinho, eliminar o problema. Se em uma determinada relação, essa mulher tendo consciência da situação de violência, ela faz o pedido da intervenção do sistema de Justiça, por sua vez ela é encaminhada para os serviços de atendimento, proteção e acolhimento. E se esse homem também passa por esse tipo de direcionamento e há uma fiscalização eficaz da medida protetiva, a chance de que um feminicídio aconteça acaba diminuindo. Então a ideia é proporcionar essa antecipação e essa prevenção.

De janeiro a abril deste ano, a região registrou 486 casos de lesão corporal no âmbito de violência doméstica, um caso a cada seis horas. Na sua avaliação, por que a violência contra a mulher ainda é tão comum?
Porque faz parte da nossa cultura e ela é estruturante da nossa sociedade. Comportamentos que muitas vezes são subestimados e a gente não presta atenção, aquela piadinha machista, aquele não respeitar a mulher por conta de idade, da condição, da posição que ocupa. Exigir determinados comportamentos, a subserviência, a submissão, se compreender como importantes os valores que são tidos como masculinos, da dominação, da força, tudo isso faz parte desse cenário. Uma violência doméstica acontece por conta desse tipo de cultura. Porque o feijão estava duro, porque o almoço não estava pronto na hora, porque o homem olhou o celular da mulher e viu um recado de um colega de trabalho, porque a mulher chegou um pouco mais tarde do serviço, ou porque voltou a trabalhar, voltou a estudar, enfim, todos esses são cenários que compõem esse tipo de violência.

O que precisa e pode ser feito para mudar esse cenário, não apenas falando de ações do poder público, mas da sociedade como um todo?
A violência efetivamente só vai diminuir na medida em que nós mudarmos a nossa relação com os relacionamentos. Mudar esse padrão machista de encarar as relações humanas. É fundamental olhar para a educação e a forma como homens e mulheres se relacionam. Fundamental olhar, analisar, compreender o que é violência de gênero, o que são essas relações e papéis de gênero, para a gente conseguir implementar essas medidas. O mote é igualdade, respeito e dignidade. Quando as pessoas se tratam efetivamente como iguais, quando elas se respeitam, quando têm dignidade, a violência deixa de acontecer. Lembrando que violência é um comportamento aprendido. A gente aprende a ser violento e a gente aprende também, e isso é interessante, a ser vítima. A aceitar determinadas posições em um relacionamento como sendo comuns, quando elas, na verdade, são representativas de violência. E se isso foi aprendido, também pode ser desaprendido, digamos assim. A gente pode olhar para esse universo de uma outra forma, mas para isso a gente tem que olhar a questão e se dispor a isso.

As pessoas ainda tratam violência contra a mulher, quando ela ocorre no âmbito de uma relação, como crime passional, muito embora não exista esse termo no Código Penal. Grupos de defesa dos direitos das mulheres se posicionam contrários a essa definição, alegando que seria a romantização da violência. Como juíza, a senhora avalia que há algum prejuízo ao se usar esse termo?
Existe porque quando você coloca o crime como fruto de uma paixão você está desculpando, tirando a responsabilidade do autor da violência, ou da sociedade ou da estrutura ou da forma como as relações se constituem, para colocar essa responsabilidade em um sentimento que é, em tese, não controlável. Não existe crime passional. Normalmente os feminicídios, se nós olharmos para aqueles que a imprensa trata com mais destaque, são frutos de um ato que foi planejado, premeditado, pensado, calculado, dificilmente fazem parte de um cenário onde, de repente, no meio de uma discussão, aquele determinado evento aconteceu. Inicialmente tem ameaça ou terror, tem a fala de ‘que vou matar, vou fazer, vou cortar a cabeça, se não for minha não é de mais ninguém’ e tudo isso faz parte desse tipo de conceito. Tratar como crime passional é um desserviço.

A senhora gostaria de acrescentar mais alguma colocação sobre esse tema?
É importante que a sociedade se conscientize de que a violência contra a mulher não é um problema privado. Ela é um problema de Estado, uma violação de direitos humanos e na medida em que isso acontece, todos nós como sociedade, como cidadãos, como família, devemos nos responsabilizar por isso. Nos responsabilizar por ações que venham a proporcionar uma diminuição, se não a erradicação do problema. E isso significa meter a colher. A gente tem que olhar para o problema dessa forma, para justamente proporcionar meios para que a mulher saia dessa situação. Ninguém sai sozinho da situação de violência. O ciclo tem que ser interrompido e a interrupção tem que ser contundente. São várias as formas possíveis de intervenção, tem que ser feita uma intervenção qualificada. Não é fácil fazer com que essa intervenção aconteça, mas é importante que essa conscientização se faça presente. 




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