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Descendente de samurais engrossa time da Fundaçao ABC
Sérgio Saraiva
Da Redaçao
09/10/1999 | 16:47
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A Faculdade de Medicina da Fundaçao ABC ganha novo impulso, ainda este ano, com a inauguraçao do prédio que vai abrigar o recém-criado Instituto de Morfologia, contando em suas hostes com o professor Hisakazu Hayashi, 72 anos, cientista de renome internacional na área de embriologia.

Descendente de samurais, Hayashi suportou apenas três meses de aposentadoria da Escola Paulista de Medicina (atual Unifesp). Ele queria voltar a lecionar e aceitou o cargo de professor titular de Histologia (estudo dos tecidos) em 1997.

Dois anos depois, foi aprovado como orientador de pós-graduaçao para os alunos da FunABC e mantém seu sonho de voltar à pesquisa pura, contando para isso com a futura aquisiçao de um microscópio eletrônico pela faculdade.

Hayashi chegou ao Brasil em 1933, dando início a uma grande aventura de adaptaçao a um país de cultura completamente diversa, com uma língua de difícil assimilaçao, dificultada ainda mais durante a II Guerra Mundial, que opôs brasileiros e japoneses. Abaixo, os principais trechos da entrevista:

DIARIO - Quando a sua família veio para o Brasil?
HISAKAZU HAYASHI - Chegamos no porto de Santos em 9 de janeiro de 1933. Eu nasci em Tóquio. Tinha entao 7 anos. Com essa idade, cheguei direto para a escola. De lá para cá, só estudei. Mas só fui me naturalizar em 1961. Se eu tivesse ficado no Japao, provavelmente teria morrido como soldado na II Guerra Mundial.

DIARIO - Sua família tinha destino certo?
HAYASHI - Todos os imigrantes da época, uma das últimas levas, vieram para trabalhar nas lavouras de café. Como o Japao já estava se preparando para a guerra, a imigraçao foi parando daí para a frente. Conosco vieram o pai, a mae e dois irmaos, um com 14 anos e outro com 19. Um outro, mais velho, ficou no Japao.

DIARIO - O sr. é descendente de samurai?
HAYASHI - Meu avô era instrutor de artes marciais num shogunato (uma espécie de condado), chamado Maebashi, na maior ilha do Japao, onde está Tóquio. O fim dos samurais se deu na reforma agrária, nos século 19. Eles terminaram com as grandes propriedades. Meu próprio avô perdeu suas terras. Ele sempre dizia que só restava como herança para seus descendentes a cultura e o conhecimento. Por isso todos os meus tios eram estudados, um deles foi chefe da biblioteca nacional.

DIARIO - O sr. chegou a aprender a lutar?
HAYASHI - Fui campeao de kendô (o caminho da espada) em minha juventude, lá em Marília. O kendô nao é para briga. Tem vários fatores morais que brecam a violência. Antigamente os samurais tinham a incumbência de ser polícia e até juízes dentro dos shogunatos. Em meu atual cotidiano, durmo às 20h e acordo às 4h. Uma das minhas primeiras atividades é exercitar o kendô. As vezes, com um cajado no lugar da espada. Para manter a saúde, ando muito, além de realizar tarefas domésticas, como arrumar a cama todos os dias. Nao era assim antes. Mas agora faço isso com uma grande alegria por estar vivo.

DIARIO - Seu pai chegou a pegar na enxada, apesar da cultura e da formaçao mais intelectual?
HAYASHI - Logo que chegamos fomos para uma fazenda na beira da ferrovia Mogiana, perto da estaçao Canaa. Era enorme. Logo o administrador notou que meu pai era mais estudado e o nomeou líder dos imigrantes. Como ele nao tinha experiência em lavoura, nao rendia muito. Ele aproveitava também os fins de semana e feriados para alfabetizar as crianças das outras famílias que nos acompanharam. Foi mais um professor. Também carpia. Foi assim que cumprimos os três anos de trabalho obrigatório na fazenda. Acho que se chamava Palmira. Até hoje tenho saudade.

DIARIO - Mesmo assim deu para o sr. estudar e aprender português?
HAYASHI - Saía da fazenda para estudar na cidade. Mas nao entendia quase nada. A situaçao melhorou quando o meu pai conseguiu um emprego numa produtora de água mineral, a fazenda Palmital, acho. Lá tomava conta do engarrafamento e da limpeza. Era fiscal.

DIARIO - A situaçao da colônia nao foi fácil durante a guerra?
HAYASHI - Meu irmao do meio se suicidou durante a guerra. Ele nao conseguia se adaptar à nova cultura. Os italianos, por exemplo, ao chegar aqui, encontraram situaçoes semelhantes a sua terra: um padre, a comida, hábitos parecidos. Os japoneses eram diferentes. Além disso, nao somos expansivos. Com 7 anos, eu me adaptei mais fácil. Meu irmao passou a puberdade e a adolescência nessa situaçao e nao agüentou. Choque cultural. Nao entendia a língua e ao mesmo tempo trazia conhecimentos que aqui nao encontravam aplicaçao por falta de comunicaçao.

DIARIO - Quando o sr. entrou na universidade?
HAYASHI - Me formei odontólogo pela USP em 1953, com 26 anos. Me atrasei muito por viver no interior. Entrei no ginásio, em Marília, somente com 15 anos. Fiz os três anos de colegial na capital, no antigo Colégio Franklin Delano Roosevelt, hoje Sao Paulo. Isso contando com a ajuda de uma professora de Marília, que me mandou ler Monteiro Lobato para melhorar meu péssimo português. Era engraçado: na chamada, eu nao devia dizer "presente!", mas sim conjugar um verbo. Por exemplo: "Hisakazu! Pretérito perfeito do verbo amar". E eu tinha de dizer. Tive dificuldades também. Um professor nao queria minha matrícula durante a guerra. Me faltavam os documentos. Um outro me salvou. Disse que problema de papelada se resolvia mais tarde.

DIARIO - Como a colônia foi tratada durante a guerra?
HAYASHI - A partir do ataque a Pearl Harbour, quando o Japao entrou na guerra em 1941, a coisa ficou mais difícil. O Brasil declarou guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japao) mais tarde. Acabamos isolados. A polícia recolheu todos nossos livros. Mas na escola de Marília eu - apesar de ser o único japonês - fui muito bem tratado pelos meus colegas. A hostilidade maior partiu da própria colônia japonesa, que chamava de traidor da pátria quem ia estudar outra língua - a dos inimigos - no ginásio. Na classe, eu tinha 39 ou 40 amigos. Só na rua é que alguns brasileiros me xingavam de "japa", o que hoje nao é mais ofensa. Os outros meninos japoneses me chamavam de "filhinho do papai" porque eu era sério nos estudos e meu pai tomava conta de um clube de tênis da colônia, onde ele também ensinava judô e kendô. Já nao podia mais dar aulas de japonês, que fora proibido. O papel de professor rendeu três ou quatro detençoes a meu pai. A coisa só se acalmou quando o delegado passou a tomar aulas de artes marciais com ele.

DIARIO - Como o sr. chegou à universidade?
HAYASHI - Fiz exames para Medicina da USP e poderia ter cursado, apesar de estar entre os últimos classificados. O problema é que nao havia curso noturno e eu precisava trabalhar para me sustentar. Eu cobrava anúncios para o jornal da colônia, o Jornal Paulista, onde trabalhei sete anos. Daí desisti da matrícula e fiquei mais um tempo trabalhando, para acumular dinheiro. Fiz um cursinho e prestei vestibular para Odontologia, também na USP. Passei. Também nao havia curso noturno. Mas o jornal me salvou. Deixaram eu trabalhar de noite.

DIARIO - Quando o sr. começou a ensinar na Faculdade de Medicina da FunABC?
HAYASHI - Eu comecei aqui ao mesmo tempo que na Faculdade Paulista de Medicina, em 1970. Essa minha primeira passagem no Grande ABC durou até 1987, sempre ensinando Histologia e Embriologia. Nesse meio tempo, como ninguém conhecia a matéria e eu era considerado o único embriologista do Brasil, acabei dando cursos por todo o país e fornecendo material didático sobre o tema para todas as escolas de Medicina.

DIARIO - Por que o grande sucesso do aluno de origem oriental nas escolas daqui. Tem a ver com a máxima samurai de seu avô?
HAYASHI - De certa forma. O estudo é muito valorizado pelos japoneses. Até ao extremo. As seleçoes sao muito acirradas, a competiçao chega a ser cruel. Por isso se ouve falar de estudantes de 13 ou 14 anos que se matam por nao poder ingressar no curso ginasial. Para dar uma idéia, um dos momentos mais felizes da minha, inesquecível, foi quando ganhei livros de inglês, de latim, compasso, papel em branco. Eu fiquei tao contente que nenhum presente conseguiu rivalizar até hoje. Nao dá para comparar. Foi ali que eu senti que ia poder - e tinha o dever de - estudar.

DIARIO - O sr., junto com outros três pesquisadores, descobriu uma das condiçoes para a sobrevivência de até 70 dias dos espermatozóides maduros no canal deferente (que leva o sêmen dos testículos até a uretra). Qual o resultado da descoberta para os senhores e para a ciência?
HAYASHI - A descoberta vai ajudar os urologistas, a Medicina, sem que usufruamos lucros com isso. Nosso resultado agora vai servir para pesquisas terapêuticas e farmacêuticas de outros cientistas, esses financiados por laboratórios, para lutar contra algumas formas de esterilidade masculina. A medicaçao eventualmente produzida a partir dos estudos vai ser testada em cobaias, depois em voluntários, até ser aprovada. Isso pode demorar uns cinco anos. Até que poderíamos tentar patentear a descoberta. Mas eu nao sou disso. Eu nao gosto muito dessa filosofia. Em suma, sou um bobo. Mas em compensaçao, eu morro satisfeito com o que descobri.

DIARIO - O sr. sonha em voltar à pesquisa?
HAYASHI - Eu gostaria de contar com a aquisiçao de um microscópio eletrônico pela Fundaçao ABC para recomeçar. Um aparelho desses serviria inclusive para o disgnóstico superprecoce de alguns tipos de câncer, como o do intestino, que pode ser detectado dois meses antes de qualquer sinal da formaçao de um tumor, o que aumenta as chances de cura.




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