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Carnaval regional: além da passarela
Daniel Lima
Do Diário do Grande ABC
11/02/2005 | 14:40
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A reação de agentes públicos e lideranças de escolas de samba à proposta de regionalização do Carnaval do Grande ABC foi extraordinariamente interessante. Tão interessante que a impressão repassada aos leitores deste Diário na edição de quinta-feira é que a proposta há muito vem sendo subjetivamente construída por muita gente que quer uma região menos fragmentada. Ou seja: há de fato uma dívida histórica de diferentes agentes públicos, privados e não-governamentais por não terem colocado em pé o ovo da racionalidade, do ganho de escala e da produtividade de um desfile de Carnaval único, envolvendo todos os grupos organizados do Grande ABC. E essa dívida, ao que parece, a maioria quer resgatar.

Aprovada em teoria, agora quem lida com o samba no pé, tem boa cabeça e não recolhe os braços da operacionalidade prática deve se juntar em torno da idéia. De preferência, no Consórcio de Prefeitos, onde o presidente William Dib, campeão de votos em São Bernardo, já se manifestou favoravelmente. Parece evidente que não haverá vozes com consistência e argumentos para deslocar a escanteio a formação da Liga de Escolas de Samba do Grande ABC.

Mas apenas isso não basta. De gentilezas, o cemitério está cheio. O céu da imaginação e da criatividade deve ser o limite para que a empreitada salte para o mundo dos fatos. De preferência, com bases de consecução, não meramente de sonhos.

Alguns pontos podem ser alçados preliminarmente como condicionantes ao desenvolvimento do plano de criação da Liga de Escolas de Samba do Grande ABC e, seqüencialmente, na definição de cronograma de propostas que viabilizem o Carnaval regional já no ano que vem. Independentemente da cronologia, entretanto, convém destrinchar mesmo que brevemente algumas questões que por certo serão pautas de reuniões:

Administração – A Liga de Escolas de Samba do Grande ABC deve gerenciar o Carnaval regional, mas não pode ser um clube fechado que ignore a amplitude dessa manifestação cultural como amálgama social. Uma espécie de Conselho Deliberativo, integrado também por representantes da comunidade, poderia somar experiência e complementar vocações para que o evento se paute pelo profissionalismo. A passionalidade deve e precisa se restringir à passarela e às arquibancadas. As rivalidades clubístico-carnavalescas devem se manter nos limites da passarela. O gerenciamento precisa combinar conhecimento empírico dos representantes das escolas de samba e lideranças de diversas atividades que estejam engajadas na construção da regionalidade do Grande ABC.

Hierarquia – É preciso definir com base na proporcionalidade de participantes e dos resultados desta temporada as agremiações que integrarão o Grupo Especial. Isso significa que o município que detiver mais integrantes terá participação maior, pelo menos na primeira edição. No regime de proporcionalidade, estariam automaticamente classificadas as escolas mais bem colocadas em cada município, de acordo com o limite máximo. Nas edições subseqüentes, acessos e descensos se darão com base na disputa em passarela, que dispensará atestado de domicílio das agremiações. Poderia ser concedido o direito de representação no Grupo Especial a pelo menos uma eventual agremiação dos municípios que não realizaram Carnaval de rua neste ano mas que, por força do novo diagrama, seriam tentados a integrar-se à festa. Afinal, a dimensão regional do Carnaval e os desdobramentos que advirão vão estimular o surgimento de novas entidades.

Sustentação – A profissionalização do Carnaval de rua do Grande ABC provavelmente retirará dos ombros do poder público a quase obrigatoriedade de financiamento precário das escolas de samba. Recursos proporcionalmente relacionados à capacidade de contribuição de cada município poderiam ser direcionados à estrutura de marketing do evento num primeiro momento e, em seguida, acabariam provavelmente dispensáveis ou empregados em outras modalidades de fortalecimento da imagem regional.

Sambódromo – O caráter de regionalidade do Carnaval de rua do Grande ABC fatalmente obrigaria o deslocamento anual da passarela que recepcionará todas as agremiações locais. Entretanto, a rotatividade consagradora de um regionalismo mais que necessário no âmbito cultural não pode se submeter aos prazeres acríticos da troca de endereço pelo simples fato de que são esses os pressupostos de integração regional. Os sambódromos provisórios, como podem ser chamados os locais em que se apresentam as agremiações, deveriam reunir série de exigências técnicas e operacionais para que o demagogismo locacional não subverta a seriedade empreendedora. A construção de um sambódromo definitivo poderia encontrar barreiras para a aprovação do local e exigiria responsabilidades suplementares do município que se candidatar à iniciativa. Seria a solução às improvisações de passarelas, mas obstaria o caráter migratório interno que permitiria revezamento dos conceitos de integração regional. Os dois caminhos que se abrem para recepcionar anualmente o evento regional reúnem, portanto, vantagens e desvantagens. A decisão caberia ao Conselho Deliberativo da Liga de Escolas de Samba.

Fundo de receitas – Critérios de meritocracia deverão balizar a atuação empreendedora de todas as agremiações envolvidas no Carnaval de rua do Grande ABC. Um exemplo para que o entendimento seja mais didático: as escolas do Grupo Especial receberiam nacos semelhantes de ingressos para a noite do desfile e teriam prazo determinado para comercialização. Findo o período, a administração do evento faria nova rodada de distribuição de ingressos entre as agremiações, readequando a oferta em função da demanda. Dessa forma, o peso de aficcionados das escolas de samba nas arquibancadas seguiria a lógica da democratização de oportunidade associada ao empenho das comunidades representadas.

Universalização – A desperiferização do Carnaval deve estar no plano de adensamento dessa que é a maior festa popular do país. O que significa desperiferização? Significa que as escolas de samba e seus dirigentes não precisam situar-se prevalecentemente nas periferias dos municípios. O fenômeno de afastamento da classe média do Carnaval no Grande ABC tem matizes que vão da sedução de descanso em direção a diferentes praças mais aprazíveis no campo, no litoral e mesmo além-mares, até a magnitude com que a mídia trata o Carnaval do Rio de Janeiro e, mais recentemente, de São Paulo. Por isso, se torna premente que na composição do Conselho Deliberativo da Liga das Escolas de Samba do Grande ABC se selecionem representantes de classe média que se arrepiam ao som de tamborins mas que invariavelmente vão cantar em outra freguesia. Conquistar ou reconquistar a camada de profissionais liberais, empresários, professores, médicos e tantos outros membros da classe média será jornada exaustiva, mas absolutamente viável quando houver a compreensão de que o Carnaval começa de fato em julho de um ano e termina em fevereiro, ou março, do ano seguinte. Desperiferizar não significa retirar o Carnaval das comunidades de bairros, mas sim, com a participação mais intensa da classe média, eliminar essa trava separatista e tornar a festa do e para o conjunto da sociedade.

A maior de todas as razões mesmo para os pouco versados em Carnaval vestirem a fantasia da regionalização do evento é uma conta simples que os pedagogos cansam de sugerir aos pais: deixem seus filhos lerem o que puderem ler, não interessa a qualidade da leitura porque, com o tempo, o hábito se cristalizará na proporção exata da seletividade das obras. A integração regional passa por tantos caminhos que seria estupidez não enxergar as ramificações do Carnaval como agente sensibilizador de fortalezas de indiferença à necessidade de o Grande ABC se reconhecer Grande ABC.



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