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Os tratamentos para dependentes de álcool não são realizados apenas em clínicas médicas ou grupos de autoajuda. Algumas empresas, na verdade poucas, estendem as mãos para os seus funcionários alcoólatras. São os casos das montadoras Ford e Mercedes-Benz, no Grande ABC.
Segundo os diretores ouvidos pelo Diário, é uma forma de preservar o funcionário e também manter a qualidade dos produtos das montadoras, além de significar preocupação social. Os grupos de ajuda existem há mais de 20 anos. Centenas de trabalhadores e familiares já receberam auxílio de profissionais e trocaram experiências sobre os seus dramas particulares de forma voluntária e sem qualquer tipo de imposição ou ameaça.
O número de participantes está muito aquém dos 5.800 alcoólatras que são tratados pela rede pública municipal, conforme levantamento realizado pelo Diário e divulgado há duas semanas. Mas que faz diferença enorme para quem ganha a chance de iniciar nova vida, no lugar de uma demissão, que provavelmente pioraria o vício.
Segundo o gerente de recursos humanos da Mercedes-, Paulo Lucarine, a adesão ao programa é voluntária e o trabalho realizado em parceria com a Associação dos Alcoólicos Anônimos desde 1985. A política da empresa não permite a divulgação de números, mas acredita-se que passaram centenas de doentes pelas salas.
"Oferecemos um tratamento para desintoxicação em clínicas especializadas e acompanhamento médico quando necessário. A nossa visão social é a de que a dependência em álcool e outras substâncias é uma doença, não apenas um vício", comenta Lucarine.
Os familiares dos funcionários da Mercedes também participam do tratamento em sessões quinzenais, enquanto os trabalhadores trocam experiências em cerca de uma hora e 30 minutos a cada semana, em pleno horário de trabalho.
"Familiares de um dependente alcoolista também sofrem, por isso abrimos a porta para eles", conta o gerente de RH.
Na Ford, os encontros são quinzenais e os próprios dependentes é que cuidam do espaço dentro da fábrica para os encontros de uma hora e 30 minutos, desde 1990. Atualmente são cerca de 25 funcionários, mas já passaram mais de 500 pelos programas de ajuda da montadora. Segundo o supervisor de saúde da América do Sul, o médico André Luís Borba, as sessões são extremamente importantes para esses funcionários, porque não visam penalizá-los, mas prestar ajuda em um momento delicado e crucial.
"Normalmente essas pessoas não estão apenas com problemas na empresa. Eles sofrem no casamento, financeiramente e outros. Eles matam um leão por dia com a abstinência", avalia Borba.
As duas montadoras trabalham nos seus programas internos com a prevenção e orientação sobre diversas doenças, entre as quais, estão o tabagismo, hipertensão, diabetes e obesidade. Além de realizar campanhas de conscientização, com palestras e questionamentos sobre questões que envolvem o dia a dia.
Passado é lembrado todos os dias para não voltar ao vício
Chegar ao fundo do poço foi o que eles sentiram na pele e na alma. Perderam mulheres, famílias, dinheiro, empregos e a autoestima. O motivo foi que Geraldo e Mário, ambos metalúrgicos, passaram grande parte da juventude dentro de bares e indo trabalhar bêbados, como a maioria dos alcoolistas.
Agora isso é passado, mas lembrado todos os dias, para não esquecer como foram os terríveis anos na dependência alcoólica. A vontade de largar e recomeçar em um caminho novo falou mais alto, após supervisores e amigos da Ford perceberem o péssimo estado em que se encontravam e os encaminharem para o Programa de Apoio à Recuperação da Dependência Química. Eles deixaram de lado a vida desregrada e, aos poucos, conquistaram de novo uma vida sóbria e interessante, como eles mesmos definem.
Mário Vicente Dias Filho, 57 anos, ficou viúvo aos 31, com dois filhos pequenos. Para complicar ainda mais sua situação, não aguentou o baque e se entregou de vez ao álcool. "Bebia todos os dias, essa era a minha vida. Fiquei sem rumo", relembra. Com o tempo, decidiu mandar os filhos para a casa dos pais, no interior de Pernambuco.
"Aí eu bebia por causa da saudade, mas dependente é assim mesmo, ele é manipulador e cria situações para ter o motivo para encher a cara". O ponto final no vício, conta o metalúrgico, veio depois de uma estadia forçada de três dias no hospital por coma alcoólico.
Mário está há 20 anos sem colocar uma gota de álcool na boca e vive feliz com a sua nova companheira e com os filhos. Nas reuniões quinzenais, ele é alegria em pessoa. Alguns dizem até que é doido. "Rapaz, eu sou é feliz e fico ainda mais quando consigo passar algumas lições para os mais novos."
Até carta anônima indica quem precisa se tratar
Para as assistentes sociais Ana Maria e Maria Cristina, da Ford, a busca pela ajuda dificilmente vem pelos próprios dependentes. Até cartas anônimas chegam às mãos delas, ou os amigos e chefes percebem a mudança no comportamento dos colegas e as avisam. As histórias são parecidas, mas cada uma merece atenção especial, lembram as especialistas.
Assim foi o caso do mineiro Geraldo de Souza, 50 anos. Com a típica fala mansa, não aceitou de primeira as conversas para participar do grupo, mas com o tempo e com sua decadência física e moral - estava ficando cada vez mais violento - procurou ajuda. "Não estava dando certo o meu casamento. Bebia todos os dias, tinha vezes que começava às 6h".
Para parar com os porres cada vez mais frequentes e mais fortes, primeiro buscou ajuda em um grupo dos Alcoólicos Anônimos perto da sua casa; depois passou a dividir as histórias com as amigas da fábrica. "O difícil é ficar sem beber. Depois de um tempo sem beber me deu uma vontade absurda, parei em um supermercado e comprei algumas latinhas de água tônica. Esse pode ser o meu vício agora", diz rindo o metalúrgico.
Para ocupar o "vazio" deixado pelo álcool, Geraldo passou a fotografar e a andar de bicicleta. "Só saio para pedalar no mínimo 50 quilômetros", brinca. Para a aposentadoria, já está pensando em trabalhar com fotografia e com documentários. Isso é muito para o homem que há 16 anos não pensava no próximo dia.
Associação oferece apoio aos familiares
As marcas deixadas pelo alcoolismo são profundas. A família é a primeira a sofrer com a dependência de um parente. As dores são frequentes, principalmente para mulheres, filhos e pais. A desestrutura no lar é uma das principais queixas dos alcoólicos no momento em que buscam por tratamentos.
Para dar suporte aos familiares que carregam os problemas do álcool e de outras drogas de forma indireta, foi criada há 27 anos a associação do Amor Exigente. São grupos de autoajuda para os familiares e para os próprios dependentes químicos.
A proposta é dar orientações sobre os problemas ocasionados pela dependência química. A entidade também mantém grupos exclusivos para viciados em drogas lícitas e ilícitas. As reuniões são semanais e duram, em média, duas horas. No Grande ABC, cerca de 350 pessoas participam nas cinco salas distribuídas em Santo André, São Bernardo, São Caetano, Mauá e Diadema.
Segundo o aposentado Luiz Antonio Dias, 58 anos, as sessões são uma forma de trocar experiência e seguir os 12 princípios básicos e os 12 princípios éticos, da espiritualidade pluralista e da responsabilidade social. "Ninguém reprime o álcool na sociedade, mas nós, familiares, sabemos bem os seus problemas", conta Dias, que coordena a sala de São Bernardo e realiza palestras sobre o tema em comunidades terapêuticas e clínicas psiquiátricas.
O aposentado sofreu dentro da sua casa por 15 anos. O filho foi viciado em crack e outras drogas. Ele entrou para o Amor Exigente em 2006, no mesmo ano em que perdeu o filho. No lugar da perda, encontrou o conforto e viu que não era o único que tinha esse problema.
"Eu bebia pouco, mas devido ao meu filho, parei por completo, não fazia sentido. Mas não tem jeito, ele morreu aos 28 anos em consequência do uso contínuo de drogas. Hoje tento passar para os demais um pouco da minha experiência", afirma o aposentado.
Os profissionais que trabalham com a dependência de álcool e outras drogas informam que é preciso a realização de mudanças na rotina da casa para ajudar na abstinência do dependente. "Como vou manter uma pessoa sem beber em casa, se eu mesmo bebo. É preciso conscientização da população, pois a bebida é passada como se não fosse droga. Ela destrói a família para a vida toda, caso a pessoa não pare de beber", comenta Dias. Mais informações sobre a associação estão no site www.amorexigente.com.br.
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