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Argentina lembra Jorge Luis Borges
Da AFP
14/06/2006 | 20:45
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A pena e o gênio de Jorge Luis Borges, o maior expoente da literatura da Argentina, são recordados nesta quarta-feira em múltiplas homenagens em Buenos Aires, nos 20 anos de sua morte em Genebra, Suíça.

Fez parte desse ciclo um ato na Biblioteca Nacional, que o escritor dirigiu entre 1955 e 1973, etapa em que o peronismo, ao que Borges se opunha e combatia, esteve proscrito e afastado do poder.

"Ordenar bibliotecas é exercer de um modo silencioso a arte da crítica", disse uma vez Borges depois de passar quase 20 anos na maior do país, onde foi colocada uma placa alusiva. Durante a cerimônia foi reproduzida sua voz numa inédita conferência descoberta gravada num disco de acetato.

O maior escritor argentino de todos os tempos, Jorge Luis Borges, poeta iluminado e ensaísta irônico diz que se arrependeu de não ter sido tão feliz quanto deveria e de ter apoiado a ditadura em 1976.

"Cometi o pior dos pecados/que um homem pode cometer/Não fui feliz", escreveu este homem de sorriso triste, mas de pensamento incisivo como uma adaga, e que deixou como legado algumas das mais belas obras já escritas em língua espanhola.

O genial escritor morreu no dia 14 de junho de 1986 em Genebra, onde passou sua infância de menino prodígio, um Mozart da palavra, que, aos sete anos, redigiu um resumo da mitologia grega e o conto 'La Visera Fatal', inspirado em Don Quixote. A precocidade literária também fez com que, aos nove anos, traduzisse do inglês 'O Príncipe Feliz', conto de Oscar Wilde.

Borges faleceu longe de sua amada Buenos Aires, cidade que definiu como ninguém nos versos de um poema ("Não nos une o amor e sim o espanto/será por isso que a quero tanto"), aos 87 anos, quatro anos depois da volta da democracia a seu país.

Ferrenho defensor da chegada do ditador Rafael Videla ao poder, em 1976, acabou horrorizado com os crimes do regime.

Filho de um filósofo anarquista e descendente de heróis da Independência, militares e guerreiros, que o fascinavam com seus códigos de honra e de coragem, encontrou uma linguagem original para definir a argentinidade.

Ao mesmo tempo, explorava com erudição acadêmica os sinuosos caminhos do azar, da revelação mística, do budismo, da cabala judia, dos artifícios do tempo e dos meios de decifrar as regras secretas que regem o Universo.

Borges enfrentou a exploração sem se render ao culto da solenidade nem renunciar à ironia, como em seu conto 'Tlön, Uqbar, Orbis Tertius', onde escreveu: "Os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens".

O fato de ter aprendido a ler em inglês, antes mesmo do espanhol, deixou nele uma impressão profunda, que o marcou em sua rota profissional, as mulheres atravessaram sua vida como raios de luz e o forjaram, como a avó materna Fanny Haslam, que lhe ensinou o idioma de Shakespeare, e María Kodama, uma de suas alunas, a quem tomou por companheira até a morte.

Outras nomes femininos que formaram seu círculo íntimo foram a escritora e jornalista Estela Canto, uma de suas musas inspiradoras, e Elsa Astete Millán, sua primeira mulher, com quem teve poucos anos de convivência.

A cegueira de Borges foi para as letras como a surdez de Beethoven foi para a música, e ele a definiu como "um lento crepúsculo".

Durante os anos 30 e 40, mergulhou na ficção mágica e fantástica através de obras-primas como 'História Universal da Infâmia', 'Ficções' e 'O Aleph'.

Com seu espírito lúdico formou uma sociedade de criação de contos a quatro mãos com seu amigo Adolfo Bioy Casares sob o pseudônimo de Bustos Domecq, que ia dos contos de detetive à la Chesterton até roteiros cinematográficos.

Um deles, o do filme 'Invasión', do talentoso cineasta Hugo Santiago, radicado em Paris, foi uma espantosa antecipação dos trágicos dias que viveria em Paris, nos anos 70.

Premiado exaustivamente e estudado em todo o mundo, jamais teve a honra de receber um Prêmio Nobel, vazio que os historiadores atribuem mais a um castigo por suas posturas políticas ultraconservadoras do que a um julgamento literário de suas obras.

"Os peronistas não são bons, nem maus, são incorrigíveis", definiu, com sutil elegância, um dos fenômenos populares de massas que tomou conta de sua Argentina.

Inimigo declarado do futebol do futebol por considerá-lo um espetáculo estúpido e brutal, gostava de se refugiar em sua casa para tomar chá com biscoitos.

Ganhou assim o ódio de uma geração sintonizada com os ventos revolucionários que agitavam o mundo, até que uma nação inteira se rendeu a seus pés e à sua obra próxima da perfeição.

O homem que havia anunciado seu suicídio e que justificou jamais tê-lo tentado "por covardia" morreu assim há 20 anos, como em um de seus contos, entrando num espelho, num labirinto ou num jardim com bifurcações.




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