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Diretor Antônio Araújo quer o fim do teatro 'escapista'
Do Diário do Grande ABC
01/05/2000 | 16:15
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A luta do diretor Antônio Araújo contra o teatro escapista parece ter chegado ao fim com a montagem de Apocalipse 1,11, em cartaz no desativado Presídio do Hipódromo. Ninguém escapa do choque concreto com a realidade da prisao nessa peça menos preocupada com as revelaçoes de Joao no Apocalipse e mais com a hecatombe moral de uma sociedade que confina seres humanos em pocilgas.

Acostumado ao confronto, ele teve de lutar contra fanáticos religiosos e burocratas estatais para encenar peças em igrejas ("Paraíso Perdido") e hospitais (O Livro de Jó). Conseguiu mais uma vitória ao integrar detentos à montagem de Apocalipse 1,11. Mais uma, nao. Mais duas. Araújo é um dos indicados para o Prêmio Multicultural 2000 Estadao Cultura, concorrendo com outros noves intelectuais na categoria de criador.

Como o resto da humanidade, esse mineiro escapou do verdadeiro apocalipse anunciado pelo profeta e costureiro Paco Rabanne para 11 de agosto do ano passado. O Anticristo nao apareceu, dragoes e arcanjos ficaram quietos em seus cantos, nao houve nenhuma tragédia nuclear e o teatro continuou uma arte viva como era no tempo de Eurípides. Porém, é preciso que se diga: Tó Araújo acredita no apocalipse como um fato banal, cotidiano, porque a cada momento o homem tem de reinventar a si mesmo para sobreviver ao flagelo existencial. Nao há, portanto, juiz mais implacável do que a própria consciência, o que faz de nós prisioneiros responsáveis pelo próprio enclausuramento.

Vai daí que o título da peça, Apocalipse 1,11, traz uma referência explícita aos 111 massacrados no Carandiru. É, portanto, uma abordagem menos obscura do que o último texto da Bíblia, que a mae do diretor, mineira catolicíssima, prefere conservar à mao para uma emergência. O filho, nascido em Uberaba há 34 anos, também é reverente e crente, mas nao faz teatro militante. De qualquer modo, a decisao de montar três peças sobre temas como a expulsao do paraíso, o sofrimento de Jó e o apocalipse nao está dissociada da osmótica religiosidade mineira. Gente que cresce vendo a procissao de Sexta-Feira Santa nao se livra dela jamais.

Araújo observa, porém, que nao foi intencional a construçao de uma trilogia com O Paraíso Perdido, O Livro de Jó e Apocalipse 1,11. Seu grupo, Teatro da Vertigem, formado em 1992 por ele e pelas atrizes Joana Albuquerque e Daniela Mefussi, começou pesquisando justamente as teorias de um homem da ciência que quase foi parar na fogueira da Inquisiçao pode defender idéias contrárias aos interesses da Igreja, Galileu. "Nao tínhamos o compromisso do espetáculo, apenas o de pesquisar as leis físicas de Newton e Galileu e tentar uma correspondência analógica com o teatro, transformando-as em movimentos expressivos".

Entre esses "movimentos expressivos", o mais próximo de todos os integrantes, claro, correspondia à lei da gravidade. A expulsao do Eden e o divórcio do sagrado estavam em segundo plano na primeira montagem do grupo, O Paraíso Perdido. A peça, escrita pelo diretor e dramaturgo Sérgio de Carvalho, foi encenada na igreja Santa Efigênia, no centro de Sao Paulo, há oito anos. "O que nos interessava mesmo, a mim e ao Sérgio, era a queda adâmica, newtoniana", diz, lembrando que o interesse dos dois convergia para estudos científicos e para a mitologia. Esse trabalho pioneiro definiu o procedimento posterior de construçao dramatúrgica. Araújo gravava depoimentos de atores, discutia com o dramaturgo, anotava observaçoes sobre a improvisaçao dos atores e o texto ia surgindo durante o processo.

A coisa era tao séria que a pesquisa de "movimentos expressivos" foi apresentada pelos dois, diretor e dramaturgo, em uma das reunioes da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). Ontem, como hoje, o Teatro da Vertigem tinha prestígio nos meios intelectuais, mas dinheiro nunca apareceu no caixa da bilheteria, até mesmo porque os espetáculos do grupo, por sua característica peculiar - a de ocupar lugares insólitos fora do palco italiano - só admitem de 30 a 60 espectadores por sessao.

66 negativas - O grupo só acumulava dívidas, mas conseguiu montar o segundo espetáculo, O Livro de Jó em 1995. Araújo achou que a repercussao e os prêmios de O Paraíso Perdido facilitariam a empreitada. "Entrei em contato com 66 empresas e foram 66 respostas negativas", conta. Graças ao Prêmio Estímulo da Secretaria de Estado da Cultura, a peça saiu, viajou por países da Europa e lançou o ator Matheus Nachtergaele (Central do Brasil, A Muralha). "Ninguém ganhava nada, estreamos com dívidas, mas tínhamos uma estrutura digna", lembra. Finalmente, Apocalipse 1,11, foi produzida nas mesmas condiçoes graças ao Prêmio Flávio Rangel e ao projeto Residência Artística das Oficinas Culturais Oswald de Andrade.

Por lidar com um material alegórico, Araújo achou melhor contar com um autor ateu e realista, Fernando Bonassi. Já tinha experiência sobre teatro metafórico depois de freqüentar as aulas de Bob Wilson e Richard Foreman no Kennedy Center de Washington, em 1997. Quando voltou dos Estados Unidos, recebeu um convite para apresentar O Livro de Jó na Rússia. O espetáculo era tao emocionante e resistia tao bem à fronteira verbal que fez um tremendo sucesso em Moscou, onde foi apresentado numa enfermaria.

"Os três espetáculos ajudaram a mudar minha relaçao com a religiosidade", observa o diretor. "De qualquer modo, nao foi uma trilogia, mas abre caminho para uma tetralogia, uma vez que a polêmica acaba por vezes obscurecendo o verdadeiro tema dos espetáculo e é preciso avançar nele", conclui. A polêmica a que ele se refere toca em três pontos: em O Paraíso Perdido, fiéis condenavam o uso da igreja para uma representaçao teatral que tinha o demônio como principal personagem. Em O Livro de Jó, o sofrimento era tanto que só num hospital desativado ela encontrou lugar. Finalmente, Apocalipse 1,11, planejada para uma temporada no Carandiru, só acabou saindo num presídio vazio, causando escândalo uma cena de sexo explícito na boate Nova Jerusalém, em que adoradores da Besta assistem à cenas que fariam de Jezabel uma santa.

Tudo isso para mostrar que o sofrimento dos presos nas casas de detençao, hoje, no Brasil, é apenas um reflexo do confinamento a que toda a sociedade está submetida num país degradado. Essa sensaçao de aniquilamento nao leva, porém, a um desfecho pessimista. Araújo, que já dirigiu tragédias como Clitemnestra, de Marguerite Yourcenar (em 1991, com Marilena Ansaldi) e dramas como Oberösterreich (1990), acha que o final de seu Apocalipse, quando acontece finalmente a reconciliaçao entre homem e divindidade, é a prova maior de que, afinal de contas, é um otimista.




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