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Viúva de Jackson do Pandeiro sobrevive como diarista
Gislaine Gutierre
Do Diário do Grande ABC
20/07/2002 | 17:45
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Em julho de 1982, o Brasil, hoje pentacampeão mundial de futebol, chorou a derrota para a Seleção da Itália por 3 a 2, e sua conseqüente eliminação na Copa da Espanha. Naquele mesmo mês, portanto há 20 anos, o país sofreu uma perda grande, porém longe de ter a mesma repercussão. Morreu, praticamente esquecido, em um hospital de Brasília, Jackson do Pandeiro. Sem dúvida, um dos maiores nomes da música e da cultura popular brasileira.

Jackson do Pandeiro teve muitas mulheres, mas só duas foram relacionamentos sérios e duradouros. Neuza Flores, 59 anos, foi a segunda, e quem o acompanhou durante 15 anos, até seus últimos momentos de vida. Ela o conheceu em 1967, em um show e, no dia seguinte, foram morar juntos.

Companheira de todas as horas, dividiu o palco com o marido em várias ocasiões, foi parceira na composição de algumas músicas – sob o codinome Mascote – e cuidou muito de Jackson tanto nos dois anos em que se recuperava de um acidente de automóvel quanto na fase profissional complicada, quando foi perdendo espaço para os artistas estrangeiros. Também cuidava da dieta e dos remédios do ritmista, que sofria de diabetes.

Hoje, Neuza Flores mora em uma casa bastante humilde no Jardim Feital, em Mauá. Está nesse endereço há cinco anos e o sustento vem de seu trabalho como diarista. Não recebe direitos autorais, nem tem mais os discos do marido, que teriam sido vendidos por um parente, para pagar dívidas. Dos artistas que freqüentaram sua casa, Geraldo Azevedo foi um dos raros a manter contato. Os demais sumiram após a morte dele.

Neuza nem fala com os vizinhos sobre seu passado: confessa sentir-se magoada pelo fato de algumas pessoas nem saberem quem é Jackson do Pandeiro. Ainda assim, mantém o sorriso largo e o semblante calmo. Bastante emocionada, ela falou ao Diário. Confira os principais trechos:

DIÁRIO – Como a senhora e Jackson do Pandeiro se conheceram?
NEUZA FLORES – Ele e Almira foram fazer um show no bairro do Belenzinho, em São Paulo, e fui decidida a conhecê-lo. Quando cheguei, lá estavam os dois tomando um conhaque. Eu me apresentei a eles e Jackson me convidou a sentar na mesa, mas recusei. Quando foi umas 23h o cantor Ary Lobo disse que ele queria falar comigo. Fiquei desconfiada, perguntei de Almira, mas logo ele apareceu e foi entregando a malinha onde guardava o pandeiro para eu carregar. Nós três fomos jantar e, de manhã, com o dia já clareando, eu falei que ia embora. Ele disse para esperar mais um pouco até meus pais acordarem porque iria comigo até lá.

DIÁRIO – E como foi na sua casa?
NEUZA – Ele chegou lá, tomou café da manhã, almoçou, chamou meu pai e minha mãe e disse: “Eu vou pedir uma coisa para vocês”. Minha mãe falou: “Se tiver ao meu alcance, seu Jackson...” Ele respondeu: “Eu quero a mão da sua filha, quero levar ela embora comigo”. Ela disse: “Se for para o bem dela, que Deus a acompanhe”. Seu Laurindo, meu pai, concordava sempre com minha mãe, e como os dois eram fãs de Jackson, ele também assinou embaixo. E assim fomos. Vivemos 15 anos juntos, até que a morte nos separou.

DIÁRIO – Aconteceu tão rápido... o que a senhora pensava sobre tudo isso?
NEUZA – Eu fiquei cismada, porque depois ele ainda perguntou “E você, morena?”. Eu disse: Acho que não vou não. É que eu trabalhava na metalúrgica Rossi há quase dois anos. Pedi um tempo, mas ele disse que só esperaria até mais tarde. Então fui. Mas, lá no Rio, fiquei com um pé atrás também, sempre esperando para qualquer hora voltar para a minha casa.

DIÁRIO – Até então, a senhora só conhecia o Jackson do Pandeiro, o artista. Mas o que a encantou no Zé Gomes (o verdadeiro nome do ritmista)?
NEUZA – Naquele jantar ele deixou de ser a pessoa do povo para ser uma pessoa caseira, alguém a fim de tomar conta de uma pessoa, e de ter alguém com quem se consolar. Vamos falar o português claro, foi para esquecer Almira que ele me levou embora. Mas ele foi, do começo ao fim, um homem de palavra. E ainda foi melhor do que eu pensava. Jackson era muito bom, muito humilde. Chegava para você e parecia que te conhecia há mil anos.

DIÁRIO – A senhora fala com tanta tranqüilidade de Almira. Nunca houve ciúmes?
NEUZA – Não! Eu admirava a Almira, porque para ser fã de um, tinha de ser dos dois. O Jackson, pela voz, pelo ritmista que era. E a Almira, pelas mímicas, porque era muito caricata. Aquilo cativava muito. Mas quando Jackson falava nela, eu sentia um ciuminho (risos), claro! Mas não era coisa alarmante.

DIÁRIO – Como era o Jackson no dia-a-dia?
NEUZA – Era muito caseiro, gostava de andar de chinelo, de shorts, e às vezes sem camisa. Comprava vários pandeiros, levava para casa, desmontava todos e depois montava de novo até conseguir deixar no som que queria. Passava horas fazendo isso. Ou ele estava arrumando pandeiro, ou tocando violão. Não gostava de sair, passear ou ir à praia. 

DIÁRIO – Como ele compunha as músicas?
NEUZA – Costumava aparecer frases na cabeça dele, e ele mandava eu escrever, porque eu era a escritora dele também (risos). Passava o tempo e vinha outra palavra. Aí ele ia montando. Compunha a melodia, montava, e depois ia ver se a palavra estava certa ou não. Às vezes levava horas e às vezes dias para compor uma música.

DIÁRIO – É verdade que ele também era dado a fazer molecagens?
NEUZA – Ah, era mesmo. Se você visse as molecagens que ele fazia! Eu vou contar uma que você vai dar risada. O Jackson era tão levado, mas tão levado que teve a capacidade de gravar um pum (risos). E ele botava para todo mundo escutar. Um dia a gente estava dormindo e ele colocou aquele gravador bem alto, pooooooooooooo, parecia um trombone! (risos) Ele era demais. Adorava contar piadas também.

DIÁRIO – Quando vocês foram morar em Olaria, ele estava em um bom período de sua carreira?
NEUZA – Não, porque nessa época nós sofremos o acidente de carro. Como ele quebrou os braços, não fazia shows, programas de TV, nada. Foram dois anos de dificuldades. Quem nos ajudou foi o irmão dele, o Tinda, que levava cesta básica para a gente.

DIÁRIO – Antes disso, o Jackson fez bastante sucesso. O que ele ganhou não foi suficiente para garantir-lhes um pouco de tranqüilidade?
NEUZA – Não. O Jackson tinha prazer de tocar e de cantar. Muitas vezes eu falava que ele devia ter cobrado mais e ele respondia: “Não nêga véia (sic), às vezes é melhor a gente cobrar pouco e ter um trabalho do que cobrar muito e não ter onde trabalhar”. Ele era muito simples. Podia ter aproveitado o nome dele e ter ganhado bastante dinheiro. Na época da Almira ele ganhou, mas com a separação, teve de dividir os bens. Do que sobrou, parte vendeu e parte ficou com a família, porque eu não fui casada com ele. Eu fiquei a ver navios. Não recebo nada. Nada, nada, nada.

DIÁRIO – Não tem nem contato com a família dele?
NEUZA – Agora é que comecei a ter contato. A sobrinha está tentando ajeitar o negócio dos direitos autorais. Quem recebia era a irmã dele, a Briba, só que ela morreu e agora tá todo mundo querendo direitos iguais.

DIÁRIO – Em seus últimos anos de vida, Jackson teve uma saúde frágil. Ele não pensava em parar?
NEUZA – Ele dizia que ia morrer cantando porque gostava muito de cantar e de tocar seu pandeiro. Nessa última excursão dele não pude ir junto porque a gente ia viajar para Roma e eu ia tratar dos passaportes do pessoal do conjunto. Eram nove horas da manhã do dia 4 de julho, quando ele me ligou do aeroporto de Brasília. Eu disse que estava fazendo um cozido, o prato preferido dele. Jackson falou: “Já, já eu tô em casa. Pede pro cunhado me buscar”. Mas depois meu cunhado voltou sem ele, dizendo que o vôo tinha atrasado, coisa assim. Acreditei na história. Mas estava tão ansiosa que nem assisti ao Fantástico, que adoro ver, e fui sentar lá fora, onde fiquei esperando. Quando deu uma da manhã um repórter da Rádio Globo me ligou para saber do Jackson. Quando contei minha versão é que ele percebeu que eu não sabia de nada. Ah, que choque que eu levei! Entrei em contato com o hospital e é lógico que o médico não ia assustar a gente. No dia seguinte fui para Brasília.




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