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Peça 'Hora Amarela' traz o confronto entre intolerância e afeto
18/02/2015 | 08:00
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A atriz Deborah Evelyn planejava um descanso depois de uma longa temporada em cartaz com a peça Deus da Carnificina quando recebeu, no ano passado, um texto enviado pela também atriz Mônica Torres, com o seguinte recado: "Você tem que montar esse espetáculo que vi em Nova York". "Era o tipo de encenação que gosto de fazer, pois trata da atualidade sem se esquecer do ser humano", disse Deborah, que adiou suas férias para protagonizar Hora Amarela, primeira montagem no Brasil de Through the Yellow Hour, do dramaturgo norte-americano Adam Rapp, que estreia sexta-feira, 20, no teatro do Sesc Bom Retiro.

"Rapp cria um momento de tensão que exige firmeza e delicadeza na encenação; por isso, Mônica e eu decidimos convidar Monique Gardenberg para a direção", conta a atriz. O convite não foi imediatamente aceito - "Nunca havia imaginado encenar uma ficção científica", comenta a diretora -, mas logo o alto grau de humanismo embutido em uma relação aparentemente apenas violenta a convenceu.

As palavras alegóricas de Rapp não são novidade para Monique que, em 2011, dirigiu uma bem-sucedida montagem de Inverno da Luz Vermelha, uma de suas principais peças. Mas, se lá o tema era o desencontro entre três personagens desiludidos, em Hora Amarela o foco está na sobrevivência da dignidade em meio ao caos.

A sinopse do texto dá o tom da montagem, ambientada em Nova York, em um futuro incerto - há três meses escondida no porão de seu prédio, Ellen (Deborah Evelyn) esforça-se para sobreviver a uma guerra e não perder a esperança de rever o marido desaparecido - ele sumiu quando deixou o esconderijo na "hora amarela", único momento do dia em que seria seguro sair.

Enquanto aguarda, Ellen é surpreendida com a chegada de diferentes personagens, como Maude (Isabel Wilker), jovem viciada em drogas que procura abrigo enquanto carrega um recém-nascido na mochila; Hakim (Michel Bercovicth), professor que traz notícias aterradoras do mundo externo; e um fugitivo sírio (Daniel Infantini), incapaz de se comunicar por não falar outra língua - outros personagens são vividos por Darlan Cunha (revelado no filme Cidade de Deus) e Daniele do Rosario.

"Ellen vive sob constante tensão, sempre carregando uma arma e se assustando por qualquer motivo, mas, ao mesmo tempo, ela luta para não perder sua humanidade", acredita Deborah. "Isso é notável em pequenos detalhes, como quando compartilha água em um momento de escassez. Não é só a agressividade um traço primitivo do ser humano - também a necessidade do afeto."

A atriz observa que a direção de Monique Gardenberg foi determinante para a peça atingir um patamar superior. "Ela não faz concessões e mantém todos os momentos de dureza, mas seu olhar feminino permite que a dignidade de Ellen seja percebida."

Monique é uma artista inquieta, que sempre enriquece o texto sobre o qual está debruçada com complementos pertinentes, como indicações para a cena ou frases que estimulam a situação. Assim, ao ler a peça de Rapp, logo notou resquícios de Fim de Jogo, de Samuel Beckett, e seu interior sem móveis, iluminado por uma luz cinzenta sem vida, comunicando-se com o exterior, onde tudo está "mortibus", apenas por duas pequenas janelas altas.

Lembrou-se ainda do clássico poema Paraíso Perdido, escrito por John Milton em 1667, que descreve a expulsão do ser humano do Éden e seu consequente contato com a dor, a perda e as provações. Monique inspirou-se ainda em uma colagem de textos de Shakespeare e em autores contemporâneos como o israelense Amós Oz e o turco Orhan Pamuk, que encontraram novos símbolos para retratar o choque e o cruzamento de culturas.

Desse caldeirão criativo, arquitetou sua montagem, reforçada por uma talentosa equipe de produção. Assim, para recriar esse clima de respiração suspensa, a cenógrafa Daniela Thomas reafirma seu talento ao transformar o palco em um verdadeiro bunker abaixo do solo: o espaço é ocupado por uma caixa cinzenta, com paredes que simulam chapas de aço. O efeito é claustrofóbico, sensação que aumenta com os sons que vêm do andar de cima. E a impressão de sufoco aumenta com a iluminação criada por Maneco Quinderé, quase sempre de fontes em cena, como luminárias, lanternas e resistências. "É tão sutil que não se percebe facilmente a origem da luz", observa a encenadora.

Outro ponto fundamental para o desenvolvimento dos conflitos é a trilha sonora, composta especialmente para o espetáculo pelos músicos Lourenço Rebetez e Zé Godoy. Segundo Monique, o som "comenta" toda a peça. "Desde o início, percebi que a trama tinha que ser rápida, tensa e dolorosa", explica. "Por isso, o som era essencial para criar essa sensação."

Monique observa três camadas sonoras no espetáculo. Primeiro, a própria trilha de Rebetz e Godoy, intervenções musicais que reproduzem sons ambientes. Em seguida, os ruídos aterradores vindos da guerra travada no andar superior. "A vida acontece lá e, ao olhar para cima, os personagens simbolicamente também buscam Deus", comenta a diretora, que aponta por fim os sons de cena, como tiros e choro de bebê.

Em entrevista recente, Rapp revelou que decidiu escrever a peça depois de ler sobre a guerra civil na Síria e sobre os conflitos recentes no Egito e em todo o Oriente Médio. "São lugares onde há tanta incerteza e caos que pensei: 'E se trouxéssemos isso tudo de uma maneira estranha e misteriosa para cá? Como lidaríamos com isso? Como se sobrevive em um mundo como este? Como se manter vivo? Como se manter são?'", disse o autor.

"Quando assisti à montagem americana, me despertou novamente a vontade de produzir, adormecida há quase duas décadas. Quis trazer para cá esta discussão que o Adam Rapp propõe sobre intolerância, religião, fanatismo e preconceito. É um momento muito oportuno", conta Mônica Torres.

HORA AMARELA

Sesc Bom Retiro. Al. Nothmann, 185. Tel.: 3332-3600. R$ 9/R$ 30. 6ª, 20 h; sáb., 19 h; dom., 18 h. Estreia 6ª, 20/2. Até 29/3

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.




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