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Entre a vida e a morte
Kelly Zucatelli
Do Diário do Grande ABC
20/06/2010 | 07:03
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"Não tenho medo de morrer, mas tenho medo que matem a minha família". Se por um lado são crianças, por outro tornaram instrumentos do crime muito cedo. Os três menores que aqui vamos relatar seus sentimentos, fazem parte de uma parcela da sociedade que convive com o drama de estarem marcados para morrer a qualquer momento.

No Grande ABC, atualmente existem 48 crianças e adolescentes ameaçados de morte. Entidades da região buscam melhores condições para garatir a preservação da vida deles. A estimativa, caso não sejam realizados trabalhos para melhorar a proteção desses menores, é que nos próximos oito anos, o Grande ABC tenha 488 mortes desse público.

Os históricos de famílias desestruturadas culminaram para o caminho da escuridão e do perigo, mas para os adolescentes não foi a família a culpada pelas escolhas tortuosas de cada um.

Brincadeiras com bola de futebol, piadas entre amigos, e todos com seus respectivos apelidos. Mas chegou a hora de falar com nossa reportagem e os que se dispuseram mudam o semblante, tornam-se mais sérios e temerosos se terão suas identidades preservadas.

CADEIA NÃO ME AJUDOU
Com as mãos inquietas, Paulo Henrique (nome fictício), 17 anos, pensa por alguns minutos por onde começar a contar a origem do seu drama.

"Com 9 anos já presenciava meu pai chegar bêbado em casa e bater na minha mãe. Aquilo me assustava e eu ficava com muito ódio dele, mas não podia fazer nada... Mudamos do Grande ABC para São Paulo e lá fui apresentado às drogas, com 11 anos de idade", conta o garoto.

Tentando conter as gírias, Paulo Henrique lembra do azar que teve quando foi convidado para experimentar seu primeiro ‘baseado' (um cigarro de maconha), e a sua mãe viu do outro lado da rua. "Cheguei em casa e prometi para ela que não aconteceria mais... Mas não consegui cumprir a promessa".

Num piscar de olhos, do primeiro baseado seguiu para o roubo. "No dia do meu aniversário resolvi comemorar assaltando uma loja, mas não conseguia segurar o revólver e preferi ficar com a faca. Deu certo e peguei confiança em fazer outros assaltos, até que um dia fui preso em Diadema, quando tinha 12 anos", lembra Paulo Henrique.

O primeiro contato do jovem com uma cela durou 17 dias, em 2004. "Foram os piores dias da minha vida. Quando vi aqueles caras pensei que morreria logo, mas em pouco tempo fui entendendo as regras do barraco (da cela) e entendia que ia ter dias que eu ia dormir na praia (no chão da cela). Era horrível, mas procurei fazer tudo corretamente para ir embora", disse ansioso.

Mas a saída da cadeia deixou o sangue do jovem ainda mais ardente para o mundo criminoso. "Os caras do bairro onde eu morava me disseram que ou eu entrava para o grupo ou ia morrer. Quando resolvi que iria assaltar sozinho, virei alvo para a morte.

Todo dia penso o que será de mim? Saio nas ruas olhando para todos os lados e planejando como posso me defender quando eles chegarem. Mas se o tiro for pelas costas? Tenho pesadelos e acordo gritando "Mãe me salva, Me salva! Me salva!

Com um ar mais lento e finalizador ela lamenta não ter mais a liberdade e revela um sonho: "Quero pedir perdão para o meu pai".

 
Medo dos parceiros e não da polícia
Medo da polícia? Não. Os meninos no alvo da morte não temem os homens fardados, mas sim os líderes do tráfico, com seus cordões de ouro e carrões. "Com eles não tem conversa. Tem que assumir o que fez quando é cercado, pois senão sobrará para nós, ou então para algum familiar", disse Paulo Henrique.

Ser pego por policiais durante um delito é algo tranquilo, pois já sabem que enquanto menores irão para a Fundação Casa, cumprirão atividades sociais e logo podem voltar para a rua.

"No mundo do crime não existe amizade verdadeira. Eles matam sem piedade, pois não existem sentimento", disse Luiz (nome fictício), 16 anos, outro personagem dessa trágica novela.

Há um ano e meio no anonimato, Luiz vive recuado na esperança de um futuro melhor ao lado da família e da filha de pouco mais de um ano. O rapaz sabe apenas seu nome completo e sua idade. O lugar onde nasceu não sabe certamente, pois sua certidão de nascimento nunca viu, assim como seu pai.

Com 10 anos saiu de casa e aventurou-se mundo afora. Com 14, fez seu primeiro assalto e pouco tempo depois ganhou o titulo de traficante de um bairro humilde de São Bernardo. "Consumia muita cocaína e crack, além de roubar e traficar. Em pouco tempo consegui comprar uma casa e ter uma vida boa. Mas a casa virou um laboratório para produzir drogas", disse.

A confiança dos grandões do tráfico foi conquistada por Luiz, que chegava a lucrar num fim de semana R$ 3.000. Mas ele foi traído pelos adversários do próprio crime que roubaram uma grande quantidade de droga que estava sob sua responsabilidade. A partir daí sua vida não teve mais paz, e ele aumentou a lista dos alvos para morrer.

Por mais que esses garotos tentem ser durões e mostrar coragem, no fundo eles admitem o medo de serem executados. "Se eu pudesse mudar algo na minha história, mudaria o meu caráter. Seria mais honesto", disse o menino de 16 anos. (Kelly Zucatelli)

Consórcio tentará convênio para melhorar proteção
O GT (Grupo de Trabalho) Criança Prioridade 1 do Consórcio Intermunicipal Grande ABC reunirá neste mês com a Coordenação Nacional do PPCAAM (Programa de Proteção às Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte), para apresentar o programa, que poderá criar um convênio para preservar a vida de crianças e adolescentes ameaçados de morte.

Se concretizado o convênio, haverá um aporte de quase R$ 900 mil para atendimento de 50 protegidos e, se fizer necessário, dos respectivos familiares. Entre os 48 casos de crianças e adolescentes ameaçados de morte no Grande ABC , está 12 em Diadema, 11 em Mauá, oito em Santo André e 11 em São Bernardo.

A projeção de 488 casos de crianças e adolescentes mortos nos próximos oito anos no Grande ABC, caso nada seja feito, foi divulgada recentemente em pesquisa da Sedh. A estimativas detectam que Mauá poderá ter 153 caso, Ribeirão Pires, 28, Diadema, 75, São Bernardo, 124, Santo André, 66, São Caetano, 7, e Rio Grande da Serra, 7,9.


Contato da família causa emoção
Telefonemas esporáticos e cartas recebidas de parentes são momentos que comovem os garotos. Eles admitem que não conseguem conter a emoção, e muitas vezes choram, mesmo que escondido dos colegas.

O terceiro de sete filhos, Eduardo (nome fictício), 17 anos, é o mais tímido. Com sandálias de dedo, bermuda e camiseta ele senta, na tarde de sol e frio, para conversar com a reportagem com ar desconfiado, mas surpreende ao disparar a frase de que começou usar drogas com sua mãe.

"Meu pai morreu assassinado quando eu tinha 1 ano. Minha mãe está presa, e eu tentando me recuperar do vício das drogas. Uso porque sou sem-vergonha!", ele frisa.

Ao fim dessa declaração, Eduardo mostra-se mais confiante em nos contar sua história de vida, com declarações comoventes como se fosse um adulto de 40 anos. Ele oferece a carta que recebera naquele dia da mãe, presa e condenada há 4 anos por tráfico de drogas. As palavras escritas em caligrafia bonita tinha o pedido para que o filho se recupere e tenha uma vida melhor... Meu filho, saia desse ‘mundo cão'. Quando sair daí arrume um trabalho! Te amo!

"Minha mãe é muito forte, mas me afastei dela depois que vi meu padrasto batendo nela. Tentei matá-lo, mas a facada só o feriu", disse com ar de raiva. Uma dívida de R$ 200 fez de Eduardo um alvo para morrer, mas ele não tem medo. "Você conhece os Narcóticos Anônimos? Então, quando eu sair daqui vou me tratar com eles para ficar livre e poder construir minha família. Mas não quero ter filhos. Tenho medo que eles usem drogas e roubem como eu fiz", concluiu.

Já Luiz sonha em ficar perto da filha, que ele pouco conviveu, e Paulo Henrique, dar uma vida melhor para a mãe, que vai além de um carrinho de ferro-velho, tudo que ele conseguiu para presenteá-la enquanto viveram na mesma casa.


Fundação Criança receberá R$ 100 mil
Afim de agilizar os trabalhos de identificação e localização de crianças e adolescentes desaparecidos, a Fundação Criança, de São Bernardo, receberá durante um ano da Secretaria Especial de Direitos Humanos a quantia de R$ 100 mil para investir em capacitação e contratação de profissionais.

Com a parceria do Conanda (Conselho Nacional da Criança e do Adolescente) o trabalho foi aprovado considerando ser uma iniciativa inédita no País e que ajudará na melhor avaliação e sistematização das práticas a serem adotadas.

A ideia, segundo o coordenador de projetos da Fundação, André Feliz Portela Leite, é propor alternativas inovadoras, que não foram detalhadas, para melhorar a localização e identificação de crianças e adolescentes. "O projeto visa a diminuição do número de crianças e adolescentes desaparecidos, seguido de meios para que haja rapidez na identificação, divulgação e investigação desses casos", explicou Leite.

DADOS
Entre 2007 e 2009, foram registrados no Grande ABC 632 boletins de ocorrência de crianças e adolescentes desaparecidos.

Com o programa desenvolvido pela Fundação Criança que contou com ações articuladas que envolveu outras esferas como delegacias do município, Conselho Tutelar, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, delegacias da mulher e hospitais, entre 2008 e 2009 observou-se uma redução de 6,4% na incidência do registro de desaparecimentos.

O presidente da Fundação Criança e membro do Conanda, Ariel de Castro, explicou que há um mês são realizados trabalhos de envelhecimento digital através de parceria com o Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas, do governo do Paraná, haja vista que o governo de São Paulo não oferece esse serviço.

"No Brasil e em todo o Estado de São Paulo, cerca de 15% das crianças e adolescentes jamais são encontrados. Em São Bernardo hoje já são raros os casos que a localização não acontece. Com esse projeto pretendemos solucionar todos os casos da cidade e disseminar a experiência nas demais cidades da região, por meio do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC", disse Castro.

ABRANGÊNCIA
O projeto da Fundação também objetiva estimular os demais municípios do Grande ABC.

A implantação de Delegacias Especializadas da Criança e do Adolescente, que existem em todos os Estados menos em São Paulo, também será debatido no Consórcio.




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