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Ferreomodelismo, brincadeira de gente grande

Miniaturas são opções para desviar das más notícias e passatempo na pandemia; diversão, entretanto, custa caro

Francisco Lacerda
Do Diário do Grande ABC
18/04/2021 | 07:00
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DGABC


Neste período de pandemia, em que a maior parte da população está reclusa em casa, a adesão a atividades prazerosas se faz necessária, até mesmo para aliviar a tensão e desviar o foco das intermináveis notícias trágicas que têm bombardeado sobremodo os lares dia após dia. E uma das opções para quem procura entretenimento e passar o tempo é o ferreomodelismo.

Esse hobby consiste na construção de modelos de transporte ferroviário em escala reduzida. Atrai praticantes de todas as idades, normalmente fascinados pelos trens de verdade, com predominância de adultos. E não esqueça de colocar o ‘E’ no meio da palavra, ‘ferreomodelismo’, pois será corrigido – Alberto Henrique Del Bianco, 65 anos, vice-presidente da SBF (Associação Brasileira de Ferromodelismo), discorda. “É ferromodelismo. Deve-se seguir a língua portuguesa. Modelismo é substantivo, então o primeiro elemento não pode ser adjetivo (ferreo), mas sim outro substantivo (ferro), ou seja, ferromodelismo.

Denominação à parte, a maioria dos adeptos admite tratar-se de brincadeira de gente grande; outros não. Certo, entretanto, é que não é barata, segundo donos dos trenzinhos. Também ‘rola’ entre eles ciúme das peças e fascínio pelas máquinas reais.

Um desses é André Tosta Palmejan, 46, engenheiro de Santo André. Carrega a paixão pela modalidade desde a época em que morava no 2º Subdistrito e estudava no Centro. Ao passar diariamente sobre a linha férrea, no antigo Viaduto 18 do Forte, hoje Adib Chammas, teve despertado o sentimento ao ver o movimento das composições, cultivado até hoje e que divide com as filhas Isabela, 12, e Juliana, 8, a quem está sempre atento ao manuseio das peças. Manipula o brinquedo para ocupar o tempo, principalmente agora, época em que costuma fazer o passeio Caminhos da Fé, de bicicleta – outra de suas paixões –, mas que teve de adiar devido à pandemia. A maquete André montou na sacada na parte de trás do apartamento, na Avenida Industrial, o que torna a brincadeira ainda mais fascinante, já que é possível admirar ao fundo a circulação dos trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos)

“Percebi que queria hobby mais para dentro da minha casa do que para fora (exposições), porque tenho duas crianças, então tinha que acompanhar um pouco elas. Tenho várias réplicas, diversos modelos, desde os atuais que rodam hoje em nossas ferrovias até os antigos, que não têm mais, como, por exemplo, uma (locomotiva) a vapor, da estrada de ferro Sorocabana, que só existem em restaurações, que são feitas por grupos específicos, como a ABPF (Associação Brasileira de Preservação Ferroviária), que é a que cuida dos trens de Paranapiacaba.”

Sua ‘máquina’ mais cara é uma importada norte-americana, de cerca de R$ 800. Já sobre a manutenção para manter a brincadeira, não revela. “É melhor não falar, porque senão a minha mulher vai saber (risos). Também tem os vagões, então acaba gastando bastante dinheiro ao longo do tempo.”

INTRUSO ESTRAGOU
Outro fã dos trenzinhos é o aposentado Sérgio Rubens Napoleão, 67 anos, 45 deles trabalhando em informática, área que o ‘ajudou’ a dar início ao hobby, já que montava trilhos com placas de computador. Morador do Rudge Ramos, em São Bernardo, lembra-se que a admiração pelo brinquedo vem de muito antes, desde a época em que no Interior morava, recebida do pai e hoje repassada a filhos e netos. “Nasci em Matão, e antigamente passava trem na cidade que ia até perto de Itápolis. Ia todo dia de manhã, e voltava à tarde. Aí a molecada fazia festa. Era locomotiva a vapor, uma 2-6-0 (norte) americana Baldwin – duas rodas na frente sem tração e seis com tração. A gente ficava vendo o trem passar. Eu tinha 7, 8 anos.”

Entrega que é passatempo sério e que consome “fortuna”. “Tem máquina que custa hoje em torno de R$ 3.500 a R$ 10 mil. Considero brinquedo. Porque, quando estou mexendo, estou brincando, me sinto criança. Um cara me xingou na internet outro dia: ‘Você é um velho e fica brincando com coisa de criança’. Respondi: ‘Rapaz, pode ter certeza que sim. Isso me deixa com a mente aberta, muito bem. Muito obrigado pelo ‘criança’. Não tem preconceito. Pode me chamar à vontade, porque realmente é gostoso brincar, é gostoso montar.”

A coleção tem 30 anos, mas atualmente ele só passa vontade, porque ‘intruso’ infestou o local onde a pista estava montada, mais de uma vez, inclusive. “Cupim invadiu todo o forro, a mesa, a parte dos trilhos. Tive de desmontar tudo, jogar fora, perdi vagão, máquina. Um amigo biólogo disse que estava tudo condenado. Desacorçoei, porque já era a quarta vez.”

Aproveita o tempo sem a maquete para praticar outros hobbies, igualmente caros, que são náutica radiocontrole, arco e flecha, motociclismo, plastimodelismo, “marceneiro de brinquedos”, além de produzir cerveja com os filhos para consumo próprio. “O dinheiro tem de ser dividido. A flexa, por exemplo, custa US$ 12, dez são US$ 120. Desvio de 40 graus do trenzinho é importado, custa R$ 500, mais R$ 500 de impostos, porque a Receita (Federal) não quer nem saber. Se paga R$ 1.000 em um desvio. São brinquedos caros. Mas minha ideia é fazer um padrão de um metro por 60 centímetros, que pode ser ligado com o de um amigo e dá para ter ferrovia de 200, 300 metros.”

TREM E PLASTIMODELISMO
Já Rui Simionato, 64, empresário de Santo André, tem o escritório decorado com alguns brinquedos, pequena parte, porque o restante permanece encaixotados. Esclarece que coleciona já há 50 anos, com acervo que chega a cerca de 5.000 peças, entre trenzinhos, carrinhos e aviõezinhos. além de fotos de Paranapicaba, que diz ter “ambiente ferroviário especial”. É muito característico, impacta bastante as emoções da gente. Comprei o trenzinho por causa disso. Também viajei muito nos trens funiculares que desciam a Serra do Mar, aqueles do cabo de aço; depois vieram os de cremalheira, que eram mais rápidos. Vivi isso, então quero estar presente com isso, ficar por perto.”

Entre os de maior valor sentimental cita o mais caro, uma Ferrari 330 P3, de cerca de R$ 1.000; outra Ferrari, a que José Carlos Pace ganhou uma corrida, não de Fórmula 1; Renault Fórmula 1 dos anos 70 do piloto francês Alain Prost; seu primeiro carrinho, Maserati Bora, em 1975; os mais “emblemáticos”, Romiseta e DKV, e, por fim, os carros reais que teve e os montou em miniaturas: Gol, Chevette, Alpha Romeo 2300, Karmann Guia, Ipanema, além dos “objetos de desejo”, mas que não pôde ter, Aero Willys 64 e SP II 75. “Sei contar a história de cada um deles.”

A graça de manter os materiais ainda na caixa, revela, é a expectativa do futuro, e não esconde que rola ciúme de todos eles. “Como a mulher classifica as joias, as bijuterias? Isso para mim é uma joia. Não no sentido de que tenha valor de milhares de reais. É uma coisa que me agrada. Quero montar todos. E se não puder, ficar trêmulo, sem condições de enxergar, porque você pisca e a vida passa, aí a minha coleção vai ser de caixa fechada mesmo. A ideia (de montar) é para quando eu estiver aposentado, velhinho, quietinho no meu cantinho, pode até ter pandemia lá fora, mas vou ficar bonitinho, brincando com meus carrinhos. A gente envelhece, mas a cabeça não. Estou esperando chegar esse momento há muito tempo.”
 

Hobby tem fãs em todo País; encontro virtual reuniu 11,3 mil admiradores
 

Ferreomodelismo é antigo, entretanto, não se sabe com exatidão onde surgiu. Praticantes dão conta de que tenha ‘nascido’ quando da adoção no mundo do transporte ferroviário. Outros dizem ter sido na época da primeira revolução industrial, por volta de 1830, por artesãos alemães. No Brasil a importação teve impulso entre 1950 e 1960. A Frateschi, em Ribeirão Preto, é a única fabricante na América Latina desses trenzinhos elétricos em miniatura, além de trilhos, vagões, acessórios etc, com representantes em São Paulo e no Grande ABC, em Santo André, a Cordeiros Hobby.

De acordo com Alberto Henrique Del Bianco, 65, vice-presidente da SBF (Associação Brasileira de Ferromodelismo), que tem 60 associados, são incontáveis os praticantes no País, mas, para se ter ideia, o último encontro – virtual, devido à pandemia –, em abril, teve participação de 11,3 mil pessoas, de diversos Estados e até do Exterior, todos admiradores também dos trens ‘de verdade’.

HISTÓRIA

O primeiro trem ‘de verdade’ no mundo surgiu em 13 de fevereiro de 1804. A locomotiva teria sido a vapor. Já no Brasil a viagem inaugural de trem ocorreu em 30 de abril de 1854, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. No Grande ABC a estrada de ferro SPR (São Paulo Raiway) data de 16 de fevereiro de 1867, idealizada por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, e funcionou até 1946. Em seguida o governo federal tomou posse e transformou-a em EFSJ (Estrada de Ferro Santos-Jundiaí). Foi repassada em 1984 à CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos), sendo transferida em 1992 à atual CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).

Na região, a Vila de Paranapiacaba é intimamente ligada à SPR. A vila surgiu como central de controle e residência aos funcionários da companhia inglesa de trens, que fazia o transporte de cargas entre a Capital, o Litoral e o Interior. A primeira estação da Vila foi inaugurada em 1867 e denominava-se Estação do Alto da Serra. Em 14 de janeiro de 1981 incêndio destruiu completamente o lugar. Recentemente a vila teve a notícia de que o Pátio Ferroviário, um dos símbolos da vila, será restaurado. A área, de cerca de 400 metros quadrados, fica no entorno da Torre do Relógio.

Operar trem real faz parte dos sonhos dos ferreomodelistas

Operar as composições reais, senti-las deslizando pelos trilhos e percorrer cidades a bordo dessas máquinas fazem parte do imaginário dos apreciadores dessa ‘brincadeira’, seja pela primeira vez ou até repetir a experiência. Ou até mesmo apenas percorrer apenas alguns trechos. André Tosta Palmejan entrega que todo ferreomodelista sonha com essa aventura. “Quero operar uma locomotiva ou, pelo menos, fazer um trecho. Vai se tornar realidade. Tenho ainda uma longa vida pela frente para realizar esse sonho.”

Outro que nutre esperança é Rui Simionato. Ele planeja o futuro para ser “um pouquinho melhor do que hoje”, inclusive com mudança de imóvel, que tenha mais quartos, com um reservado somente aos brinquedo. Depois mata a vontade. “Meu trenzinho é fantástico e o ambiente de trens é uma coisa que sempre gostei. Sou aposentado, mas ainda trabalho, tenho muita coisa para fazer ainda, e essa (operar o trem de verdade) é uma delas.”

Já Sérgio Rubens Napoleão conta que andou em trens quando era moleque, tinha 14, 15 anos. O pai de um amigo era maquinista e, vez ou outra, cúmplice, porque fazia vistas grossas às traquinagens dos então garotos. “Rapaz, é uma coisa totalmente diferente. Eu gostava de andar, inclusive andei na V8 Russa. Tinha de ficar escondido, mas quando estava fora das estações podia ficar à vontade. Sempre tive ligação com ferrovias. Esse foi um sonho realizado.”




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