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Introspecção na calada da noite
Rodolfo de Souza
02/12/2021 | 00:01
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Em noite de silêncio onde uma música é companheira cá nos meus ouvidos agraciados pela força da tecnologia que possibilitou que ela viesse ter comigo, bem próxima a mim, eu me deleito empreendendo viagem pelo mundo das palavras. A música fala-me em particular, porque percebo no outro a tendência nenhuma de se entregar a outra arte que não seja a arte do sono. Muito sensato – concluo eu, uma vez que, na quietude da madrugada, nem todos desfrutam da mesma euforia musical. Respeito, pois, a opinião de quem prefere o travesseiro para suas confidências mais íntimas ou, quem sabe, somente para o merecido repouso. Mas eu aprecio sobremaneira a música e a literatura, entidades mais do que presentes na minha vida. Sobretudo a literatura que me faz deitar a pena sobre este papel digital, branco e atraente papel digital, para, quem sabe, construir algum significado para aquilo que pouco ou nenhum entendimento nos oferece.

E quase me esqueço de mencionar a presença do vinho, aquela taçazinha matreira que hoje me acompanha nesta reflexão qualquer coisa mais profunda acerca dos rigores dos tempos atuais. Que me perdoem aqueles que não dividem comigo o apreço pela bebida. Mesmo porque, admito a existência de outras formas de embriaguez a que muitos se entregam. Embriaguez que faz se aventurar o ser humano por outras planícies em que os espinhos venham somente de ervas que são facilmente evitáveis.

Digo tudo isso como forma de me esquivar de comentar as asperezas desta vida repleta de pandemia, miséria, saque aos cofres públicos, destruição do meio ambiente, da educação, da cultura, da economia e... Chega! Nem é preciso me aprofundar mais na questão, sob pena de revirar o estômago do leitor mais atento, do leitor de inteligência refinada, que tem o inconformismo como companheiro nessa jornada um bocado difícil. 

Pronto! Mais uma vez caio na tentação e despenco na garganta monstruosa que nos come por uma perna. Tento gritar, mas meu grito se recusa a se transformar em protesto, talvez por considerar inútil dar asas ao desespero. Procuro, pois sim, considerar a voz otimista que teima em deitar nos meus ouvidos um dedinho de prosa que exalta a vitória do bem sobre o mal. Aquela doce conversa de sempre. 

Consola saber que muitos dividem comigo o mesmo sentimento, embora a letargia tenda a anestesiar essa gente, em cujo coro o açoite canta noite e dia, e sua melodia já soa como algo normal. Há mesmo uma calma viscosa e rançosa diante do caos.

E agora, como forma de nos dissuadir da crença na vitória do bem, a nova variante do bicho chegou, como outras chegaram, para escancarar à população do mundo toda a sua fragilidade. Diferente de um furacão, de um terremoto ou de um vulcão, o fenômeno é oriundo de um universo micro que se movimenta sem ruídos, causando estrago ainda maior. E não se atém a um único território, o que o torna mais letal. Ele viaja de um lugar para o outro, bem mais rápido e mais difícil de conter do que o magma.

Não se pode, pois, deter fenômenos naturais, nem o vírus antes que cause muitos estragos. Mas se o ser humano se dedicasse à evolução do pensamento, muitas outras catástrofes seriam evitáveis. E aquilo que não fosse evitável seria, pelo menos, suportável.

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.com.




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