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Estou em casa, na minha vida

Centreville se livra do estigma de invadido com conquista do registro dos imóveis pelos moradores

Francisco Lacerda
Do Diário do Grande ABC
08/03/2021 | 00:01
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Foram necessárias quase quatro décadas para que incertezas dessem lugar à segurança, ao conforto e à convicção para que, enfim, moradores do bairro Centreville, em Santo André, possam chamar de seu o lar onde vivem. Riscam do histórico o estigma de invasores e substituem definitivamente por ‘proprietários’. Os 1.187 imóveis da localidade passaram há cerca de um ano por processo de regularização fundiária, com a distribuição pela Prefeitura das matrículas. Em fevereiro do ano passado foram entregues os 55 primeiros documentos . A promessa da administração é a de que as demais sejam distribuídos ainda neste primeiro semestre.

Projetado para ser espécie de Alphaville, próximo a Barueri, na Região Metropolitana de São Paulo, o Centreville sofreu a primeira invasão em julho de 1982. Os invasores dizem ter encontrado no local na época apenas mato alto e ‘esqueletos’ das residências, abandonadas após falência da construtora responsável pelo empreendimento (leia ao lado). Hoje é bairro seguro, tranquilo, ruas asfaltadas, escola, UBS (Unidade Básica de Saúde) e é orgulho para os moradores. Comum a todos eles o amor pelo vilarejo, do qual dizem jamais pensar em sair.

Um dos líderes da invasão e até hoje residente no local, no mesmo imóvel desde o dia da ocupação, Tarcísio da Silva Calé diz ter sido o primeiro a receber a matrícula, e compara o momento à satisfação ao ser pai. “O sentimento é o mesmo de ter um filho. Ver o filho nascer e crescer, estar bem encaminhado, formado. Agora, com esse papel em mãos tenho segurança total, documento que prova que sou proprietário da casa, ninguém vai me incomodar mais. Agora é viver.”

Rosângela Ferreira da Cruz, 50, é outra ativista da invasão. Ainda criança, chegou ao bairro junto com a mãe e irmãs. Viram na invasão a oportunidade da casa própria. Participou de quase todas as associações do bairro, sempre “correndo atrás” da documentação, que afirma ser a prova de “que tudo na vida é possível”. Casou e, como o quintal era muito grande, construiu sobrado nos fundos da casa da mãe. Os três filhos nasceram “dentro” do Centreville, que diz adorar. “Não saio por nada, é maravilhoso. Muita gente saiu e se arrependeu. Valorizou muito. Uma coisa que a gente sempre teve vontade de ter era a escritura. Agora vou poder deixar alguma coisa para meus filhos, meus netos, porque todo pai e mãe quer deixar alguma coisa para os filhos.”

BARRICADAS 

“Quando cheguei aqui já fazia dois anos da invasão. Eu derrubava árvores, carregava troncos e colocava no meio da rua para a polícia não passar, para não tirar a gente daqui”, diz José Manoel Florêncio, 56, comerciante e há 33 anos na vila, ao revelar as táticas para dificultar na época a ação das forças de segurança contra a ocupação. Acompanhou de perto a reestruturação do bairro. Viu chegar a água encanada, postes nas ruas, conserto de casas, construção de outras. Mora em cima do bar, que afirma ser de onde tira o sustento do lar, no qual mora com outros cinco familiares. Para ele, o registro é “uma beleza”. “Nossa senhora! Valorizou muito, estou seguro que é meu.” Entrega que não sai do Centreville “nem se não conseguir”. “Aqui é bom de morar, organizado, civilizado, tem ruas grandes. Só faltava a escritura mesmo.”

NA MÃO DE DEUS 

Perceptível nas falas dos moradores do bairro o receio quanto à demora para a regularização fundiárias. A pecha de invasor por muito tempo acompanhou-os. Hoje esse estigma não existe mais. Quem garante é Romeu Corrêa de Oliveira, 65, há 30 no Centreville, também comerciante. Relata que existia o desespero, a preocupação no amanhã, porque, revela, “não era minha (casa)”, não tinha como provar, a qualquer hora poderia ser retirado do imóvel e ver o sonho desabar. “Sempre tive esse medo. Mas hoje posso tratar como minha. E olha que gastei muito dinheiro, as pessoas me chamavam de ‘burro’. Deixei na mão de Deus. Hoje posso falar que gastei dinheiro no que é meu. Não troco esse bairro por nenhum outro. Se falar isso perto da minha mulher ela bate, porque adora morar aqui, e eu também. Agora, com o documento na mão, só saio daqui para o (cemitério) Curuçá".

Esse temor, por outro lado, ainda faz parte dos dias de Valter Carvalho de Jesus, 69, aposentado, morador da vila há 12. Ele não tem o registro, apesar de já ter recebido a visita de agentes da Prefeitura para medição e outras burocracias. “Quando pegar (documento) vai mudar porque vou me sentir mais seguro, tranquilo, sossegado. Arrumei inteira, reformei todinha. Gastei uns R$ 150 mil. Investi tudo que tinha aqui. Não vou vender, é terreno grande, casa razoável. Já estou velho, vai ficar para meus filhos, porque acredito que vou embora antes (risos).

PREVISÃO 

Em nota, a Prefeitura de Santo André informa que a previsão para finalizar o processo de titulação aos moradores é neste primeiro semestre. Já foram cadastrados 723 lotes no perímetro de intervenção da Reurb, sendo que 647 famílias já foram contempladas com a titulação de seu respectivo lote. O Paço informa ainda que há “diversos projetos em andamento, os quais são traduzidos como benfeitorias para o bairro e proporcionarão melhorias na infraestrutura urbana da região”.

Dorival de Oliveira Silva, oficial substituto do 2º Cartório de Registro de Imóveis Anexos de Santo André, explica que o documento entregue aos moradores é a Reurb (Regularização Fundiária Urbana), que tem os mesmos valor e importância que a escritura de compra e venda. É processo que simplifica a situação fundiária e transfere direto ao proprietário a matrícula do imóvel. E o melhor, sem despesas. “Essa lei prevê no primeiro momento a regularização do terreno. Com ela o registro vai direto para o nome de quem está na casa. Não há mais nada a fazer. E é custo zero.” Como diz Calé, a briga “acabou. Agora é viver”.

A briga acabou, diz Calé, líder da invasão e que ainda mora no conjunto

Caminhava para o fim a ditadura militar e um jovem militante do PCdoB se destacava à frente da Savu (Sociedade Amigos das Vilas Unidas). Tarcísio da Silva Calé, ou somente Calé, como é conhecido, não imaginava que a ocupação ao conjunto habitacional, junto a outros líderes comunitários, se transformaria em marco das invasões a imóveis abandonados. Ele, no entanto, devido a regra imposta por ele mesmo, de que solteiro não teria direito, não recebeu casa. Hoje, com saúde debilitada, três horas por dia de hemodiálise três vezes por semana, se locomove com ajuda dos filhos. Diz que não vai parar de lutar por melhorias ao bairro, mas que a “briga acabou”. O legado agora passou para a filha mais velha, Vanessa Calé, 37. Calé conta com detalhes o ‘drible’ na polícia para ocupar o local. 

“Conversando com outras lideranças, descobrimos o conjunto abandonado e propomos a invasão. Na entrada, do lado esquerdo, tinha o pavilhão do construtora (Nova Urbi)  e a maquete, também abandonados. A gente queria fazer o mapa da vila para saber onde levar o povo. Fomos ao pavilhão fazer esse mapeamento. Quando chegamos lá vimos a maquete pronta, do conjunto todo, era só pegar. Roubamos e demos continuidade. Mas descobrimos que tinha policial infiltrado em nossas reuniões. Desmanchamos as reuniões e aceleramos o processo de ocupação. Eles (seguranças) esperavam a gente de madrugada, mas nós atrasamos e entramos com o dia clareando, pelo fundo, na Rua da Conquista, onde hoje está fazendo a marginal do rio (hoje Avenida Professor Luiz Ignácio de Anhaia Mello). Todo mundo (invasores) foi saber só no dia da invasão, meia hora, uma hora antes, dependendo da localidade que cada um morava. Imagina o trabalho para ir atrás desse povo todo. Foi muita gente. A imprensa, aqueles programas populares Gil Gomes, Zé Bétio, anunciaram a invasão do conjunto em Santo André. Nós entramos e a polícia bateu em cima, porque a policia estava sabendo. Mas nós conseguimos dar um nó, porque eles não sabiam dia nem horário, só tinham ouvido o bochicho. Horas depois a polícia chegou e me disse: ‘Você tem dois minutos para arrancar todo mudo aqui de dentro’. Respondi que não ia arrancar ninguém. Jogaram a gente dentro do camburão, eu e as outras lideranças, quatro pessoas. Nós tínhamos a relação do povo que estava ocupando, nome e endereço. Não fomos revistados e um dos líderes, o Batista, esqueceu a lista no bolso. Dividimos em quatro dentro do camburão comemos a lista para não entregar o nome de ninguém. Depois de solto fui ao Palácio do Governo falar com o Reinaldo de Barros (ex-político). Quando cheguei vi que o pessoal tinha invadido três casas que eram alojamento dos guardas. Deu confusão, falei que tinha que tirar o povo de lá. Não era por causa de três casas que a gente ia perder todo o conjunto. Fomos conversar, mas começaram a jogar os ‘trens’ do pessoal na rua. Como fomos para conversar e vieram com ignorância, aí deu a confusão. Eu também não era flor que se cheirasse, vi o pessoal com a TV dos moradores na mão, fui para cima e o guarda atirou, à queima-roupa. Queimava, mas fui para cima, até cair. Me levaram para a santa casa e depois para o Heliópolis, foi minha salvação. Quando me recuperei voltei para cá, para a batalha. Consegui minha escritura. Fui o primeiro a pegar. O pessoal fez essa gentileza porque sou o mais antigo do bairro. Tenho respeito muito grande pelo Paulino (Serra, prefeito), porque ele cumpriu com a palavra, disse que iria entrar para a história como o prefeito que conseguiu negociar o Centreville. Agora minha briga acabou, só usufruir como morador. Na associação não tenho mais participação. Com esse papel em mãos tenho segurança total, documento que prova que sou proprietário da casa, ninguém vai me incomodar mais. Pedi a Deus para me trazer até a negociação, e Ele me deu essa vitória. Então, para mim, acabou. A briga acabou!”

Bairro foi pensado para ser Alphaville do Grande ABC 

Inicialmente planejado para sem condomínio de luxo, com imóveis de alto padrão e pensado para a classe média alta, o Centrevillle deveria ser, de acordo com moradores, como Alphaville, entre Barueri e Santana de Parnaíba, na Região Metropolitana de São Paulo. A construtora Nova Urbi, responsável pelo empreendimento, entretanto, faliu, o que fez com que as estruturas, chamadas de ‘esqueletos’ pelos invasores, e algumas casas em formação fossem abandonadas e, posteriormente, invadidas, em duas investidas, a primeira na manhã do dia 16 de julho de 1982, do lado esquerdo da Rua Principal, atual Rua Sargento Silvio Delmar Rollemback, seis anos após o abandono das obras, por cerca de 100 famílias, lideradas por Tarcísio da Silva Calé, ou só Calé, como é conhecido; a segunda, do lado direito, com o restante das estruturas, um ano depois, em pleno sábado de Carnaval. É considerada uma das mais bem-sucedidas invasões, em plena vigência do regime militar, e tem hoje 1.187 lotes urbanizados, dos quais 647 documentados.

Linha do tempo

1973 

Tem início a construção do condomínio residencial Centreville, projeto residencial de alto padrão voltado ao público de classe média alta. O financiamento é pela Ceesp (Caixa Econômica do Estado de São Paulo).

1977 

A construtora responsável pelo conjunto habitacional, a Nova Urbi, entra com pedido de falência e paralisa as obras da segunda etapa do bairro.

Junho de 1982

Correm boatos de que o conjunto será invadido. Entretanto, não há apontamento de lideranças, fazendo com que ninguém saiba quando as casas serão de fato ocupadas.

16 de julho de 1982

Começa por volta das 6h a invasão de uma parte do bairro. Caminhões e ônibus transportam os invasores. São cerca de 100 famílias.

17 de julho de 1982

Após reunião, comissão de invasores cadastra as famílias no conjunto.

19 de julho de 1982

A Caixa obtém mandado judicial para desocupação dos imóveis. Invasores batem o pé e dizem que não vão sair.

20 de julho de 1982 

Passeata de invasores reafirma a posição de não sair da ocupação. Meses depois, comissão de moradores inicia negociação com a Caixa para compra das casas.

Fevereiro de 1982

A segunda parte do conjunto é invadida. Era um sábado de Carnaval. A ocupação total chega a 582 famílias.

16 de julho de 1991

Nove anos após a invasão, poucos compradores originais ainda vivem no bairro, mas deixam de pagar prestações e voltam a ser considerados invasores. À época, no local já havia cerca de 10 mil pessoas, divididas em 800 famílias.

2000

Prefeitura ingressa na Justiça com ação de execução fiscal por falta de pagamento de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano).

Março de 2006

Projeto de reurbanização para regularização do Centreville tem início.

Março de 2011

Comissão de vereadores é formada para pressionar a Prefeitura e CDHU a concederem a posse dos imóveis às famílias que moram na localidade.

Agosto de 2011

Governo do Estado promete, mas não cumpre, levantamento socioeconômico do Centreville, uma das etapas da regularização fundiária. À época, cerca de 5.000 pessoas que vivem no vilarejo têm futuro incerto. 

2012

Invasão faz 30 anos, moradores agradecem pelas melhorias no Centreville, mas querem a posse dos imóveis.

7 de fevereiro de 2020

As primeiras 55 matrículas começam a ser entregues aos moradores. À época existiam 1.187 lotes cadastrados na vila. 




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