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Negros lutam por mais espaço na Igreja

Pastoral afro-brasileira católica irá celebrar amanhã o Dia da Consciência Negra na região

Arthur Gandini
Especial para o Diário
20/11/2021 | 08:09
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DGABC/André Henriques


“Estamos chegando do fundo da terra/Estamos chegando do ventre da noite/Da carne do açoite nós somos/Viemos rezar.” É com a música A de Ó(Estamos Chegando), do cantor Milton Nascimento, que será iniciada a principal das missas da região relacionadas ao Dia da Consciência Negra. A data é comemorada hoje e o culto católico acontece amanhã, às 15h, na Catedral Nossa Senhora do Carmo, no Centro de Santo André. O trecho da melodia aborda o período da escravidão no Brasil, cujas raízes na sociedade motivam os negros a cada vez mais buscarem ser notados e ocupar espaços de poder. E esse processo tem se refletido na Igreja Católica. 

“Você vê na sociedade, nas famílias, a quantidade de negros que tem. Aqui em São Paulo, são muito migrantes. Aí você vai na Igreja, é difícil ver um padre negro. É tudo branco”, afirma Teresinha de Jesus, 66 anos, coordenadora da Pastoral Afro-Brasileira no Grande ABC, órgão interno da Igreja Católica.

A pastoral será responsável pela celebração amanhã. A missa será um pouco diferente do convencional. Conta com todas as passagens que são obrigatórias no culto católico, a exemplo da leitura da Bíblia e o sermão do padre, mas será animada a partir de músicas da cultura afro-brasileira por meio de tambores. A entrada da Bíblia, no início, contará com uma Bandeira do Brasil, uma cruz envolvida em um pano preto, um vaso de flores e um banner com a imagem de Zumbi dos Palmares, ex-escravo e figura que é símbolo no movimento negro. Fiéis também devem utilizar vestimentas coloridas, por exemplo, no estilo de países africanos. “A primeira coisa que me chamou a atenção na pastoral foi a celebração, a espiritualidade”, conta Maria Candida de Paula, 65, que mora em Santo André e participa da pastoral desde 2015. Ela afirma que o órgão é responsável por elevar a autoestima dos negros nas igrejas.

A pastoral católica está presente em todas as cidades do Grande ABC, com exceção de São Caetano e Mauá. Foi fundada em 1988 e tem em torno de 20 voluntários que atuam para organizar a participação dos negros na Igreja, assim como para incentivar a participação em debates sobre a igualdade racial e a entrada na vida religiosa. A pastoral possui organização também a nível nacional e é vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), grupo que reúne os bispos católicos do País. 

DESAFIOS

Fiéis e religiosos católicos afirmam que o racismo é estrutural na sociedade e muitas vezes velado, ou seja, não ocorre de forma clara e acaba por ser negado pelos seus praticantes. Apontam que a participação dos negros é pequena em organismos pastorais dos fiéis e também no clero. Há ainda resistência para negros ocuparem espaços de poder. Outras demonstrações de racismo são mais diretas. Missas como a de amanhã seguem as regras do Vaticano para a realização de cultos. Entretanto, grupos conservadores católicos costumam afirmar de forma pejorativa, por exemplo, que as celebrações contêm “macumba”, em referência a religiões de matriz africana como a umbanda e o candomblé. “A liturgia é sagrada. Nós colocamos (a cultura afro-brasileira) onde há espaço e é possível”, defende Candida.

O bispo responsável por administrar a Igreja Católica na região, dom Pedro Carlos Cipollini, tem dado apoio à discussão sobre o racismo na sociedade. “O Brasil é um País que não acertou as contas com os seus 400 anos de escravidão. Foi dividido em dois Brasis. O andar de cima era o Brasil branco, que podia tudo. As leis valiam em termos. O andar de baixo era o mundo dos negros, propriedade dos patrões. Isso virou uma sociedade violenta, disfarçada em bonobia (gentileza). O brasileiro é cordial?”, questionou ele, no início do mês, em entrevista para a página no Facebook do Diário.

Para o padre Edmar Antonio de Jesus, assessor da pastoral afro-brasileira na região, a tendência é que a participação dos negros na Igreja cresça com o tempo. “A comunidade afrodescendente sempre esteve presente em nossas paróquias e comunidades, a diferença hoje é que esta presença se faz mais por ser notada”, avalia.


JESUS NEGRO ENVOLVE REPRESENTAÇÃO DE FIÉIS E RELIGIOSOS

Faz parte da discussão sobre a representação dos negros na Igreja Católica a imagem que é apresentada de Jesus Cristo. Pinturas tradicionais trazem uma figura com características físicas europeias, herança da colonização portuguesa no Brasil. Contudo, teólogos e historiadores têm ressaltado que a figura real seria diferente.

“Faça uma pesquisa rápida de Jesus no Google. Como é a sua aparência? O Jesus representado em quadros, filmes e novelas é, na maioria das vezes, branco. Há uma intencionalidade e uma mentira nisso que têm a ver com a colonização, a intolerância e o racismo. Afirmar que Jesus é branco é desconsiderar a história, a arqueologia, a geografia e a Bíblia”, afirma Guilherme Botelho Junior, teólogo e professor de história da Igreja Católica.

O especialista aponta que há um consenso entre os estudiosos de que o líder religioso era um homem com a pele mais escura do que a representação usual. “Demonstra a provável aparência de Jesus, que vivia no Oriente Médio do século I, ou melhor, a aparência dos judeus”, ressalta.

Rogério da Silva, teólogo e integrante do CNLB (Conselho Nacional do Laicato do Brasil), órgão que organiza os fiéis católicos, aponta que a questão da cor da pele do líder religioso envolve uma imposição da cultura europeia. “Aquilo que era um processo de aculturação passa a ser a única verdade. Isso envolve também o pensamento filosófico e artístico que é esmagado”, pontua.

O padre negro Herculano Vicente, 53, da paróquia Santo Antônio, em São Bernardo, ressalta que o valor de todas as pessoas independe da cor da pele e afirma que todos são amados por Deus. Ele conta que possui em sua sala, na paróquia, um quadro com a representação de Jesus negro. “Quando o vejo, sonho com uma sociedade mais justa, solidária e fraterna. Sei que estou representado”, finaliza o religioso.[08.ASSINA_PE]<TL></CW><CW>AG</CW>[/08.ASSINA_PE]




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