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Após 21 anos, panelas ficam guardadas na casa dos Lemes

Família está triste por ter de cancelar festa que já atraiu cerca de 5.000 pessoas em S.Bernardo

Bia Moço
Do Diário do Grande ABC
20/12/2020 | 00:17
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Denis Maciel/DGABC


Panelas guardadas, casa arrumada e o sentimento de vazio. É assim que está o clima da família Lemes, que, depois de 21 anos, teve de adiar o tradicional almoço de Natal realizado todo dia 25 de dezembro no Parque São Bernardo, em São Bernardo, por causa da pandemia da Covid-19. A ação social, que chegaria neste ano à sua 22ª edição, é encabeçada por Maria Aparecida do Rosário Lemes, 93 anos, a Dona Cotinha, que confessou que neste ano o clima será “parado”.

O cenário da casa em que moram oito integrantes dos Lemes está diferente, já que nesta data, a poucos dias do Natal, a família já estaria com toneladas de comida sendo separadas e brinquedos espalhados por todo canto. Os itens, anualmente doados por cerca de 3.000 colaboradores, no fim, davam vida a caldeirões de comida, e também a sacolas de presentes entregues às crianças.

“É muito triste (não fazer o almoço de Natal). Sentimos muito. Nesta época já estávamos nos preparando e, neste ano, infelizmente, não poderemos fazer nossa ação”, lamentou a matriarca da família, que, mesmo aos 93 anos, não deixa de pensar no bem ao próximo. “Por mais de 20 anos entreguei marmitas a moradores de rua na porta da minha casa. Às vezes, no almoço de Natal, aquelas pessoas só teriam aquela refeição”, completou.

Dona Cotinha lembra que todos os anos, no dia 24, quando todas as pessoas estão celebrando a passagem do Natal, ela e toda sua família estavam com as panelas fumegando para que, às 12h do dia 25, tudo estivesse pronto. Ela garantiu que no Natal de 2021 espera fazer “uma festa melhor, mais bonita e mais completa”, mas afirma que a tradição não ficará de lado no ano que vem, seguindo o cardápio: arroz, feijão, macarrão sem molho, farofa, carne de panela e frango assado. Para sobremesa, melancia, arroz-doce e o tradicional bolo recheado de 100 quilos.

“Hoje eu só fico olhando, porque eles (filhos) não me deixam mais cozinhar”, disse Dona Cotinha, que contou que fica supervisionando cada detalhe na cozinha de fogão à lenha. “Eu gosto muito de participar”, confessou a matriarca.

Filho mais velho de Dona Cotinha, Benedito da Silva Lemes, o Ditinho da Congada, 68, disse que a família pensou em fazer a ação social de forma diferente, sobretudo para entregar os presentes das crianças. Porém, diante do aumento de casos de Covid, a família teve receio de que houvesse aglomeração na porta da casa, e preferiu deixar este ano “na lembrança”.

“Não tem como fazer. Não encontramos uma maneira. Se fizermos qualquer tipo de ação, só para dizer que foi feito, estaremos indo contra o que pregamos a vida toda com esse almoço de Natal, então descaracterizaria”, explicou, dizendo que o principal deste momento é “a união das pessoas, a caridade, o amor ao próximo, o respeito à vida.”
Ditinho agradeceu às pessoas que ajudam na ação, já que procuraram a família Lemes para realizar as doações. “Muitas pessoas nos ligaram e disseram que entregariam as doações e a gente guardava para o próximo ano. Mas não pegamos”, explicou, afirmando que não faria sentido guardar os mantimentos com tantas pessoas necessitando.

“Quando tinha 8 anos, chorei de saber que rezava para um Deus que, na noite de Natal, deixava minha família sem ter o que comer. Meu pai me explicou que um dia, aquele mesmo Deus me daria o suficiente para multiplicar, e assim foi”, contou emocionado. “Foi a Dona Sebastiana (uma vizinha) que me deu comida no Natal, e ali aprendi sobre partilhar”, finalizou.

O irmão mais novo, José, 57, foi quem convenceu Ditinho de que a festa seria necessária, há 22 anos. “Nosso Natal começou com 50 pessoas na rua de casa, e alcançou 5.000. Não podemos pensar em parar. É doído demais para nós não fazer este ano, mas vamos seguir”, garantiu.

As irmãs Maria Aparecida, 59, e Ana Maria, 64, também lamentaram a falta da festa. “Vamos passar o Natal deste ano chorando, lembrando que, naquela hora, estávamos com tudo organizado para nosso almoço comunitário”, disse Maria Aparecida, defendendo que a pandemia ficará para a história e servirá de aprendizado para as pessoas. “O mundo precisou parar, e as pessoas tiveram de ficar em suas casas para refletir e resolver as diferenças. Quando tudo isso passar, espero que todos estejamos diferentes”, completou.

ALÉM DOS LEMES
Quem também está se sentindo vazia é Marinalva Souza Oliveira, a Lia, 49, responsável todos os anos por organizar os presentes das crianças. “A gente sente muito por não poder fazer a festa neste ano, e sabemos que as crianças esperam por esse momento, já que muitas só ganham aquele presente. Mas o ano que vem estaremos de volta”, projetou.

Vilma Kunert, 66, está no projeto da família Lemes desde a primeira edição. “Mais de 20 anos fazendo o almoço de Natal, e não poder oferecer isso à comunidade é muito triste. Mas se Deus quiser será só neste ano e, em 2021, estaremos de volta com toda a força”, afirmou.

Ditinho anuncia projeto social para 2021

Mesmo que o tradicional almoço de Natal da família Lemes tenha sido barrado pela pandemia da Covid, os planos continuam. Benedito da Silva Lemes, o Ditinho da Congada, 68 anos, anunciou que no próximo ano deverá inaugurar o Projeto Cultural e Social Família Lemes.

A ideia de Ditinho é lançar a ação no dia 13 de maio, dia em que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea libertando os negros da escravidão. “Quero retomar a festa do dia 13 de maio e, junto, lançar esse projeto”, revelou Ditinho.

“O dia 20 de novembro se diz que é o Dia da Consciência Negra, mas, na verdade, é a data da morte do Zumbi dos Palmares. O dia que contempla a libertação dos negros é no dia 13 de maio, e, por isso, quero celebrar a data e relembrar a importância da nossa luta anualmente”, contou.

Ditinho revela que espera englobar todas as ações da família no projeto, como o almoço de Natal, a Congada e também a festa de 13 de maio. “Quero criar um time de futebol para a molecada da periferia também. Chegamos à conclusão de que o gestor público não tem condições de realizar políticas públicas. Não consegue e não vai conseguir. E, se formos ficar esperando, não teremos”, disse o líder do projeto. 
 


 




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