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Almanaque Cortázar é magnífico baú de raridades
08/07/2014 | 08:30
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De A de abuela (avó) a Zzz, a universal onomatopeia do sono. Vai assim, de uma ponta a outra, o dicionário biográfico Cortázar - De la A a la Z (Alfaguara), magnífico álbum organizado por Aurora Bernárdes e Carles Álvares Garriga para marcar o centenário de nascimento do escritor argentino, autor de O Jogo da Amarelinha, Histórias de Cronópios e de Famas, Bestiário, As Armas Secretas, Último Round e de tantos outros livros que fizeram a cabeça de gerações e gerações de leitores mundo afora.

Antes de tudo, uma palavra sobre os organizadores. Garriga é responsável pela edição de Papéis Inesperados, coletânea de textos inéditos de Cortázar publicados em 2006, 22 anos após a sua morte.

Aurora foi a primeira mulher de Cortázar e nomeada por ele sua herdeira universal. Foi ela quem escreveu a Carles dizendo que havia uns "papeizinhos de Julio" que talvez se pudessem publicar. Resultaram nos Papeles Inesperados, volume de 500 páginas contendo preciosidades como um capítulo inédito de O Livro de Manuel, um dos romances do autor.

Aurora e Carles se uniram de novo neste projeto de comemoração do centenário de Julio Cortázar, argentino nascido por acidente em Bruxelas em 1914 e que passou boa parte da sua vida adulta em Paris, sem deixar de ser portenho até a medula, até morrer de leucemia em 1984.

A ideia dos dois é que um autor inventivo como Cortázar merecia mais que uma biografia comum, daquelas que acompanham o personagem do berço à cova e esmiúçam, de maneira tão racional e documentada como possível, cada etapa de sua passagem por este vale de lágrimas.

Cortázar, sabemos, era mais do riso e do jogo e assim merecia esse livro pensado como dispositivo lúdico, que o leitor pudesse abordar como bem entendesse. Lendo de cabo a rabo, ou melhor, de A a Z, uma página após a outra, ou bem saltando de lá para cá, procurando temas de interesse segundo a ordem alfabética e, a partir de então, sendo guiado por estímulos contidos em cada um dos verbetes. Afinal, eram esses métodos alternativos de leitura que faziam o encanto de O Jogo da Amarelinha, o romance que se lê de duas formas principais, mas também aceita outras portas de entrada, e de saída.

Se começarmos pelo A de abuela, encontraremos a referência à avó de Cortázar, a senhora Victoria Gabel de Descotte, que nos aparece numa charmosa foto de 1960, preparando um mate. Há um texto de Cortázar falando da avó? Sim, num trecho do Livro de Manuel em que descreve uma cena de infância, com a avó colocando a mesa do desjejum, um rumor de pratos e talheres, o ruído das crianças ao fundo, o calor das manhãs de janeiro... Provavelmente doces memórias da infância, transcritas num texto ficcional.

Na própria letra A encontramos a referência a Aurora, com fotos do casal e dela sozinha, juntos a trechos de cartas em que Cortázar fala da esposa a amigos. "Vivo tanto para minhas coisas, e tão contente com a presença de Aurora, que não necessito uma vida social intensa", ele escreve em 1957 para Eduardo Jonquières.

Se Aurora sabe do seu papel na vida de Cortázar, e por isso se inclui no livro que organiza sem qualquer traço de cabotinismo, nem por isso se mostra ciumenta. Tanto assim que, na ordem alfabética, é precedida por uma certa Alejandra, que parece muito charmosa em sua foto, fumando um cigarro enquanto lê um livro dobrado. Pelo índice de ilustrações ficamos sabendo que se trata de Alejandra Pizarnik e as anotações são parte de uma carta endereçada a ela por Cortázar em 1964.

Como o assunto são as mulheres, queremos saber se lá está Carol Dunlop, última esposa do escritor e morta antes dele. Sim, lá encontramos a bela Carol, fotografada com um gato no colo. Ao lado, o manuscrito de um comovido poema de amor escrito por Cortázar em inglês - idioma materno da canadense Carol.

Aurora, como Carol, aparecem em outro verbete, Casamientos. Sabemos, através de cartas de Cortázar, que ele e Aurora se casaram na mairie (subprefeitura) do 13 ème arrondissement de Paris e foram comemorar num restaurante chinês. E descobrimos que se casou com Carol, depois de quatro anos de vida em comum, para regularizar uma situação "que um dia será útil a Carol, já que ela tem a metade da sua idade". No entanto, Carol partiu antes de Julio, o que o levou a escrever Os Autonautas da Cosmopista, lúdico diário de viagem pelas estradas francesas, dedicado à moça que teve morte prematura.

Esse percurso sentimental do livro representa uma de suas possibilidades. Podemos viajar através das obras, ou dos personagens que marcaram o autor. Estão todas e todos lá. Ou quase. Como falamos de mulheres da vida real, temos a curiosidade de saber das mulheres ficcionais, a primeira delas, claro, a que se encontra na abertura do romance mais famoso do autor. "Encontraria a Maga?", lê-se na primeira frase do livro. O narrador, saberemos depois, é Horácio Oliveira, e a Maga, uma estranha uruguaia que ele conhece em Paris e pela qual se enamora.

Mas a Maga, sabem os leitores, nunca está onde a procuramos. Não existe um verbete com seu nome. Procuramos então no R de Rayuela (O Jogo da Amarelinha) e também lá ela não aparece. Em compensação, descobrimos esse verbete, que traz, em duas páginas coloridas, as capas das primeiras edições do livro em vários idiomas, incluindo a edição de 1970 da Civilização Brasileira, que conquistou tantos leitores no País para a literatura de Cortázar.

Descobrimos, também neste verbete, trechos de uma entrevista do autor dizendo de sua surpresa ao descobrir que um livro destinado aos adultos fez sucesso principalmente entre os jovens. Conta de sua emoção ao receber a carta de uma norte-americana de 19 anos. Ela escreve para agradecer o escritor por lhe ter salvado a vida. Diz que havia decidido se matar por ter sido abandonada pelo namorado quando lhe caiu nas mãos um livro estranho chamado Hopscotch. Abriu-o e foi lendo noite adentro, sem conseguir parar. Quando o dia amanheceu, jogou fora as pílulas que havia comprado para se matar porque chegara à conclusão de que seus problemas não eram tão graves assim. Ah, sim, Hopscotch é a tradução em inglês para O Jogo da Amarelinha.

Em suas tentativas de explicar por que um livro tão adulto caiu tão bem no gosto jovem, Cortázar conjectura que isso talvez se deva ao fato de que o romance não procura dar lições a ninguém. "Os jovens encontraram ali suas próprias perguntas, suas angústias de todos os dias, de adolescentes e da primeira juventude, do fato de que não se sentem cômodos no mundo em que estão vivendo, o mundo de seus pais", escreve. O que aumenta ainda mais o mistério, pois o narrador, Oliveira, parece um homem de cerca de 40 anos.

Se essa inadequação ao mundo fez de O Jogo da Amarelinha uma espécie de Apanhador no Campo de Centeio portenho, Cortázar revelaria ao largo de sua vida outras modalidades de insatisfação. Sabemos que a visita a Cuba lhe pareceu uma revelação, jamais esquecida: "Lá... eu tive o meu caminho de Damasco", diz, referindo-se à conversão de São Paulo.

Aproximou-se também da Nicarágua, país para o qual escreveu o livro Nicarágua, Tão Violentamente Doce. Diz, em carta à sua mãe: "Dedico muitos esforços à Nicarágua, que tão admiravelmente luta para manter sua soberania frente aos Estados Unidos, que desejam esmagá-la".

Em meio a essa adorável barafunda de papéis, fotos, manuscritos, capas de livros, dedicatórias, passaportes antigos, documentos, anotações ligeiras junto a palavras muito pensadas, surge esse Cortázar multifacetado e, no limite, inesgotável.

Admirador de Charlie Parker e Che Guevara, teve em Jean Cocteau uma fonte primária de inspiração, junto com o primeiro surrealismo, aquele de Breton. De tanta disparidade e ecletismo nasceu um escritor incomparável, cuja prosa equivale, para o leitor, a uma prática lúdica da liberdade. Cortázar de A a Z é livro para quem já conhece essa obra e deseja reencontrar-se com o personagem e com o que escreveu, pensou e viveu.

Serve, da mesma forma, como excelente iniciação a quem ainda não teve a felicidade de mergulhar em seus contos e romances. Quer saber? O livro é tão bom e bonito que o melhor é lê-lo do começo ao fim e depois voltar saltando de um verbete a outro, ao sabor do acaso. Ou vice-versa. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.




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