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Sai no Brasil 'A Caverna', de Saramago
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
31/12/2000 | 14:28
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O escritor português José Saramago convida o leitor a atravessar A Caverna (Companhia das Letras, 350 págs., R$ 31), publicado após o prêmio Nobel de Literatura em 1998, o primeiro de um autor de língua portuguesa. É seu 12º romance e o 33º livro que forma o que ele próprio chama de "trilogia", ou "tríptico involuntário", com Ensaio sobre a Cegueira (1995) e Todos os Nomes (1997).

O problema é sua travessia. Responsável por grandes momentos do prazer de ler em português com passagens de lirismo, ironia e humor em obras como O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) e Jangada de Pedra (1988), entre outras, Saramago mantém sua linha de mesclar o real com o imaginário que, contudo, nao se sustenta em todo o romance. Ao mesmo tempo que a obra possui passagens de beleza inegável, também tem momentos de muito tédio.

Saramago retoma a atmosfera kafkiana de outras obras, como Todos os Nomes. Franz Kafka, ao lado de Fernando Pessoa, sao os escritores que Saramago mais admira. Em A Caverna, ele acrescenta George Orwell e Platao, com uma versao do Big Brother e uma adaptaçao do mito da caverna.

Se o Grande Irmao do futuro imaginado por Orwell em 1984, publicado em 1948, nao tem hoje as feiçoes totalitárias e de vigilância constante sobre os cidadaos, é porque se transformou. O totalitarismo atual, segundo Saramago, subestima os valores culturais e superestima o capitalismo, o pensamento único de que só o mercado salva, pelo poder econômico e pela globalizaçao, dos quais o escritor mostra ojeriza em suas palestras e entrevistas, nao pelos benefícios tecnológicos, mas pelo esquecimento dos valores humanos.

Em A Caverna, Saramago coloca em foco um grande Centro Comercial, representando um shopping center. Ao seu redor, um Círculo Industrial, um Círculo Verde, um Círculo Agrícola e a vila. Este Centro cresceu a ponto de se tornar maior que uma cidade e determinar a vida dos cidadaos que vivem nele, com uma vigilância permanente. Os de fora, como o oleiro Cipriano Algor, sua filha Marta, noiva de Marçal Gacho, segurança do Centro, a viúva Isaura Madruga e o cao Achado têm de se diferenciar para nao serem engolidos pelo esquema. Dentro do Centro, vedado ao mundo exterior, a realidade é a perfeiçao organizacional e o controle, que dao uma ilusao de estabilidade. O oleiro nao consegue mais vender suas peças de cerâmica para o Centro. Seus pratos, vasos, tigelas e travessas sao substituídos pelos mesmos itens, só que de plástico. Entao, ele tenta fazer esculturas para sobreviver como indivíduo, ao perceber que nao se enquadra mais no esquema de pensamento único do Centro. Seu genro é promovido e precisa mudar-se para o Centro, um simulacro do mundo externo. Viver nele é conviver com sombras da realidade externa. A saída para a família de Cipriano sao os subterrâneos, abaixo do estacionamento e dos frigoríficos. Uma caverna, enfim.

Platao explica, com seu mito: o ser humano habitaria o interior de uma caverna, preso a correntes, e só poderia ver na parede do fundo as sombras do mundo exterior, uma projeçao imperfeita da realidade, o mundo das idéias perfeitas, que fica do lado de fora. Só ao libertar-se das correntes e seguir para a luz ele se encontraria com a perfeiçao. Em Kafka, o paralelo está em O Castelo, no qual o protagonista K. tenta entrar em um edifício público mas nao consegue, devido a uma série de empecilhos.

Saramago vinha de uma série de romances históricos até ter a idéia deste livro ao ver os alicerces de um grande shopping em Lisboa e encontrar várias esculturas em barro à venda em um centro de cultura popular no Rio. Adiou a publicaçao do livro após ganhar o Nobel, em funçao de compromissos. Ateu convicto e antieuropeu, o autor mantém ainda sua veia comunista e humanista, que pulsa para o "pequeno cérebro em cada um dos dedos da mao", com a qual pincela a realidade do mundo moderno neste fim de século, eforçando-se para reverenciar o indivíduo. Mas esta ligaçao entre sua cabeça e suas maos pode ser impedida devido a obstruçao no caminho. Em A Caverna, seus ombros estiveram entupidos durante boa parte da obra.




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