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Liberdade apavora presidiária em 'A Cela'
Do Diário do Grande ABC
23/05/2000 | 15:21
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Encenado em países como Argentina, Colômbia e Chile - onde já esteve várias vezes -, o dramaturgo francês Michel Azama faz sua primeira viagem ao Brasil para acompanhar os ensaios de "A Cela", peça de sua autoria que estréia no dia 2, na Sala B do Teatro Alfa, em Sao Paulo.

Trata-se de um monólogo, no qual o autor flagra uma presidiária de 33 anos em sua última noite na prisao, depois de ter cumprido uma pena 16 anos pela morte do marido. A atriz brasileira Angela Barros vai interpretar o monólogo sob direçao do francês Jean-Jacques Mutin.

O texto foi escrito na década de 80, sob inspiraçao de uma intensa experiência vivida por Azama. Durante três semanas, ele dirigiu uma oficina com 12 internas do maior presídio feminino francês, situado ao norte do país, destinado a mulheres condenadas a penas que variavam de quatro anos à perpetuidade.

"Nada do que está no texto é ficçao", diz Azama. "Meu trabalho foi criar uma situaçao dramática que provocasse na personagem a urgência de falar, porque no teatro nao se fala apenas para passar o tempo, como se faz numa mesa de bar", afirma.

Terror - Daí ter situado a prisioneira na chamada na véspera de ser libertada, o que propicia nao só um balanço de sua vida na cadeia como flashes da vida anterior à prisao. Porém sobretudo, flagra o terror que a liberdade inspira, o medo de enfrentar a difícil reintegraçao na sociedade sob o estigma de ex-presidiária.

"Segundo as estatísticas, o maior número de suicídios ocorre nas semanas que precedem o fim da pena ou nos primeiros meses de liberdade", afirma Azama. Estatísticas deixaram de ser números frios para o dramaturgo francês, após sua experiência no presídio. Ao terminar a oficina, todas as 12 mulheres tinham vontade de manter contato com Azama, que escolheu uma delas, a mais velha, condenada à prisao perpétua, como correspondente oficial.

"Nao poderia escrever para todas e ela passou a ser minha porta-voz no grupo e vice-versa", ressalta. Por meio das cartas, ele acompanhou o drama de Dominique, uma jovem presidiária, condenada a 17 anos por assalto a banco. "Ela era muito engraçada, alegre; tinha duas filhas que foram adotadas por sua mae, ou seja a avó das crianças", conta. Ao sair da prisao, tentou reaver a guarda das filhas, mas a mae recusou. Entrou com um processo na justiça e perdeu. Dois meses depois, suicidou-se.

"A perda do contato com a família é uma das graves conseqüências da construçao de grandes presídios centrais, prática que obriga as presas a afastarem-se de suas cidades de origem", comenta Azama. As presidiárias têm o direito de ver os filhos uma ou duas vezes por semana, mas em sua maioria vêm de famílias pobres, que nao têm dinheiro para longos e constantes deslocamentos.

"Da cidade de Marselha, por exemplo, no norte da França sao mil quilômetros e as passagens sao caras", diz. "Diante disso, muitas maes vêem os filhos uma ou duas vezes por ano, se muito, e quando saem da prisao dificilmente conseguem resgatar essa relaçao familiar."

Além desse corte drástico na relaçao com os filhos, Azama fez outras descobertas importantes sobre a vida no presídio, todas tratadas dramaticamente em A Cela. É sabido, por exemplo, que nos presídios masculinos, o crime de estupro é imperdoável, sendo muitas vezes punido com a morte pelos companheiros de cela. Azama descobriu o correspondente feminino ao crime de estupro: o infanticídio.

Numa das cenas de "A Cela", a presidiária rememora a chegada de uma infanticida ao presídio. "As outras presas nao a chamavam pelo nome e diziam, por exemplo, no almoço: infanticida passe-me o sal." Renegada até pelas companheiras, ela acaba por matar-se. Porém, o mais interessante, está na descoberta do crime "valorizado". "O crime respeitado é o assassinato do marido; a mulher que matou o marido é admirada por sua coragem e em geral, se torna uma líder entre as companheiras de cela", afirma Azama.

Uma das cenas mais bonitas da peça foi recriada livremente por Azama a partir de uma descoberta igualmente intrigante: depois de quatro ou cinco meses de prisao, as mulheres deixam de menstruar. "Isso realmente ocorreu com todas as mulheres daquele presídio", diz Azama. "Talvez pelo fato de elas serem proibidas de ter relaçoes sexuais."

Azama reuniu várias dessas histórias narradas ou vivenciadas no presídio em uma só personagem. "É uma peça muito difícil, porque há muitas passagens de ritmo e emoçao; num minuto ela ri, noutro entra em pânico e eu, como ela, estou morrendo de medo", salienta a atriz Angela Barros.

"Todas as atrizes que já acompanhei em ensaios, choram muito, ficam muito emocionadas num primeiro momento e isso é bom", comenta Azama. "Mas, em seguida, há todo um trabalho a ser elaborado, porque a interpretaçao nao pode cair no melodrama; a atriz precisa ter total controle de suas emoçoes, para tocar o público."




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