Ameaçados por possível novo Plano Diretor, moradores têm relação íntima com a natureza e carecem de infraestrutura
ouça este conteúdo
|
readme
|
“Viemos à terra para preservar as florestas e os animais. Somos os primeiros habitantes, mas ela não nos pertence, nem a ninguém.” A fala de Gilmar Nhamandu, 35 anos, cacique da tekoa (aldeia) Guyrapaju, localizada no pós-Balsa, em São Bernardo, revela o profundo contato que os povos indígenas possuem com a natureza. A relação íntima vai além da sobrevivência básica e está intrinsecamente ligada à história e à evolução dos povos originários do País.
A área de manancial, cercada por Mata Atlântica, que passou a estar ameaçada recentemente pela atualização do Plano Diretor do município, é habitada por cerca 134 indígenas do povo Guarani Mbya, segundo dados do Censo Demográfico 2022. No espaço existem em três comunidades: Kuaray Rexakã, Guyrapaju e Nhamandu Mirim. O território fica dentro da Terra Indígena Guarani Tenondé Porã, que tem aproximadamente 15.969 hectares e perímetro aproximado de 161 km – e está localizada em quatro municípios: São Bernardo, São Paulo, São Vicente e Mongaguá.
A conexão com a floresta nativa que cerca a aldeia Guyrapaju é algo cultuado e sagrado por cerca de 20 famílias que vivem no local. O alimento, os rituais religiosos e até mesmo o lazer das crianças e jovens dependem da natureza. Para tentar manter esse estilo de vida, os indígenas lutam contra o frequente desmatamento e a crescente poluição, através de fiscalizações no entorno, ações de educação ambiental, de reflorestamento e de mapeamento dos locais afetados.
“Estamos em um local sagrado, onde nos fortalecemos. É o nosso canto, nossa dança, nossa reza, onde nos comunicamos com o criador da terra. Quando morremos, quando estamos debaixo da terra, não levamos nada do que conquistamos. O dinheiro não traz felicidade, as pessoas não entendem isso”, diz o cacique Gilmar.
Além dos povos originários, a zona rural de São Bernardo, conhecida como pós-Balsa (após a construção da Represa Billings na década de 1920), concentra os mais diversos estilos de moradores: os descendentes dos imigrantes no período colonial; aqueles que vieram trabalhar na extração de minério nas décadas de 1950 e 1970 e posteriormente nas indústrias; outros que foram despejados da região central do município e foram realocados no território; os que precisaram fugir dos altos preços do aluguel na área urbana; e também quem queria aumentar o contato com a natureza e viver em uma área de manancial.
POTÊNCIAS LOCAIS
Foi inicialmente pela economia habitacional que a assistente social e perita Elisa Teixeira, 41, escolheu o bairro Taquacetuba para viver, há 17 anos. Porém, durante a pandemia da Covid-19, sua relação com o território mudou completamente. Nos fundos de casa, Elisa montou uma estufa e hoje complementa a renda com seu trabalho de jardinagem e paisagismo. Com mais de 50 espécies, a moradora trabalha com mudas ornamentais, hortaliças, frutíferas e temperos.
A ideia é ampliar futuramente o negócio com o cultivo e comercialização de mudas medicinais e criar quintais produtivos com as mulheres da comunidade, para falar sobre hortas e alimentação saudável. “Aqui é uma área rica em biodiversidade, o pós-Balsa é uma das maiores riquezas que temos, pois estamos em uma área de manancial e de proteção ambiental”, conta Elisa, que se diz privilegiada por viver tão próxima à natureza.
Turismo ecológico e produção e comercialização de artesanatos são alguns dos potenciais explorados. Fernanda Cristina Bezerra dos Santos, 34, conhecida como Nanda Saints, produz peças de cerâmica com impressão botânica de folhas nativas da Mata Atlântica, folhas medicinais e plantas alimentícias não-convencionais em seu ateliê localizado no bairro Santa Cruz.
“O objetivo sempre foi valorizar e aumentar a visibilidade do território, por isso as peças possuem descrição no verso para que as pessoas saibam o nome da folha e possam pesquisar suas propriedades. A partir da impressão botânica nas cerâmicas posso contar a história da área rural, muitas vezes desconhecida pelas pessoas”, explica Nanda, que também trabalha na formação de mulheres em vulnerabilidade social.
“A questão de trabalho aqui é complicada, é preciso atravessar a balsa e enfrentar todas as suas dificuldades para conseguir trabalhar. Como muitas mães não podem ficar fora de casa ou as pessoas mais velhas não conseguem se locomover, busco ensinar o artesanato como fonte de renda. Mostro para elas que não é preciso ter grandes ferramentas para produzir as peças como os ateliês mostram. É possível usar o que tiver em casa, a ideia é que seja acessível para todos”, complementa a ceramista.
ALÉM DA NATUREZA
Na estrada do Rio Acima, no bairro Curucutu, próximo à aldeia Guyrapaju, está localizada a fazenda Planeta Natureza, espaço destinado para o ecoturismo e turismo pedagógico. O local é comandado pelo casal Tatiana Bomfim, 46, e Reinaldo Macabeu Luiz, 45, que vive imerso em dez alqueires (quase 20 hectares) de natureza. A propriedade, criada para receber os escoteiros desbravadores, é alugada para passeios escolares, parada de romeiros ou outros eventos ligados à preservação e valorização ambiental.
Apesar do amor pelo território, Tatiana destaca as carências, principalmente relacionadas a infraestrutura, da área, além da falta de valorização local pelo poder público. “O município não tem uma narrativa forte sobre a história local, precisamos valorizar a cultura e os produtores daqui, pois isso fortalece nossa identidade e também a sustentabilidade da região”, pontua Tatiana.
O grupo de moradores, que faz parte do Coletivo Pós-Balsa Vive, cita como exemplos de falta de políticas públicas no local a falta de saneamento básico e de energia elétrica, a precariedade no transporte público e a ausência da pavimentação nas vias mais afastadas do distrito. Questionada sobre os investimentos e melhorias para o local, a Prefeitura são-bernardense não respondeu ao Diário.
Além da precariedade ou ausência dos serviços públicos, a atualização do Plano Diretor do município é a mais recente preocupação dos habitantes, que estão lutando desde agosto contra a aprovação do PL (Projeto de Lei) 52/2024 na Câmara de São Bernardo.
Ambientalistas criticam revisão do Plano Diretor do município
A atualização do Plano Diretor de São Bernardo, em votação na Câmara Municipal desde agosto, tem gerado preocupação em ambientalistas, órgãos oficiais e na sociedade civil. O Projeto de Lei 52/2024 propõe mudanças no ordenamento territorial de área florestal no bairro Tatetos, no pós-Balsa, o que permitiria a ocupação urbana do local e até a construção de galpões logísticos. Hoje, a área é classificada como macrozona de proteção e recuperação de manancial.
A bióloga e professora da USCS (Universidade Municipal de São Caetano), Marta Marcondes, explica que 55% do território de São Bernardo está inserido em área de proteção dos mananciais da Bacia Hidrográfica do Reservatório Billings – e aproximadamente 30% faz parte do Parque Estadual da Serra do Mar.
“Essas áreas são extremamente frágeis e mantêm fisionomias de Mata Atlântica, algumas em recuperação, outras de proteção integral. Além disso, a Terra Indígena que mantém as aldeias Guarani Mbya também fazem parte desse território e qualquer alteração deve ser discutida com o Conselho Indígena, o que não aconteceu”, diz Marta.
A possível construção de centros logísticos deve aumentar a ocupação do solo e o desmatamento das áreas florestadas, o que levaria à morte de espécies, mudança de temperatura e perda de umidade, reforça Virgílio Alcides de Farias, advogado especialista em direito ambiental e assessor do MDV (Movimento em Defesa da Vida do Grande ABC).
“(A construção) compreende a supressão da floresta, agravando os já drásticos efeitos das mudanças climáticas, redução da produção de água, aumento de cargas de poluição com atividades urbanas conflitantes com mananciais.”
Farias alerta ainda que, caso aprovado, o plano deverá ser submetido para análise de compatibilização com a Lei Específica da Billings. Ambientalistas criticam ainda a falta de consulta pública para ouvir povos originários e moradores.
Silvia Muiramomi, socióloga indígena e liderança do Povo Guayana-Muiramomi, reforça que, apesar das críticas, a população não é contrária ao desenvolvimento urbano, mas que é preciso considerar os impactos negativos. Silvia rebate os argumentos sugeridos por vereadores de que centros logísticos no pós-Balsa ampliariam a economia local. “Na verdade, poucas pessoas seriam empregadas, porque galpões logísticos seriam utilizados apenas para o transporte de cargas, aumentando o fluxo de veículos no local e consequentemente atraindo outros problemas”, destaca.
O líder da aldeia Guyrapaju, Renato Veríssimo, 30, afirma que o estilo de vida da população indígena sofrerá impacto. “Eles precisam nos ouvir. Nossa luta pela preservação não vem de hoje. Os direitos dos povos indígenas não são negociáveis. Caso o plano seja aprovado vamos continuar lutando pelo reflorestamento e pela recuperação de tudo que for derrubado”, finaliza.
Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.