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'A causa de Deus é para unir, não separar', diz pai Ronaldo
Gabriel Gadelha
Especial para o Diário
01/04/2024 | 08:13
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FOTO: André Henriques/DGABC


A Umbanda enfrenta desafios, especialmente o preconceito, e a transformação da antiga Pedreira Montanhão, em Santo André, em um santuário nacional para a religião busca enfrentar esses obstáculos. Ronaldo Antonio Linares, Guardião do Santuário, explora a origem da iniciativa, os obstáculos e os planos, tratando a importância da preservação da natureza, a luta contra os estereótipos e a promoção da diversidade religiosa. A criação do Santuário Nacional da Umbanda busca não apenas atrair visitantes, com um dos maiores pontos turísticos do Grande ABC, mas trazer conscientização sobre a importância da conservação da natureza e do respeito às tradições de matrizes africanas. Leia a entrevista.

Nome: Ronaldo Antonio Linares
Estado civil: Casado
Idade: 88 anos
Local de nascimento: São Paulo
Formação: Radiologista
Hobby: Antigomobilista (quem se interessa por ou participa em atividades ligadas a automóveis antigos)
Local predileto: Ubatuba-SP
Time do coração: São Paulo
Livro que recomenda: Os Orixás na Umbanda e no Candomblé, de Wagner Veneziani Costa, Ronaldo Antonio Linares e Diamantino Fernandes Trindade 
Artista que marcou sua vida: Francisco Egydio, cantor brasileiro dos anos 1950

Quais foram os principais desafios durante o processo de transformação da área da antiga Pedreira Montanhão no Santuário Nacional da Umbanda?

Não tínhamos nenhum espaço junto à natureza, e a própria razão dos cultos afros serem realizados na natureza. Nós precisávamos de um lugar que pudéssemos realizar nossas oferendas sem ferir a sensibilidade de ninguém. Eu até criei um lema para isso: ‘O umbandista não precisa de catedral frutuosa, linda e maravilhosa, como só um gênio humano é capaz de conceber, ele só precisa de um pouquinho da natureza, como somente Deus foi capaz de criar’. Essa é a nossa filosofia. Nós nos consideramos aqui, recuperando a natureza, um simples operário de Deus fazendo um trabalho que já era preciso, o de devolver o verde para onde não deveria ter sido tirado.

Em 2018, foram registradas 615 denúncias de intolerância religiosa no Brasil. O número saltou para 1.418 em 2023, um aumento de 140,3%. Em sua experiência, quais têm sido os principais desafios da Umbanda e de outras religiões de matriz africana no Brasil?

O preconceito com relação à umbanda é muito intenso. No princípio, quem mais brigou foi a igreja Católica. Posteriormente se tornou a evangélica, e brigam até hoje. Eles não conhecem a religião. Eles não se dão ao trabalho de aprender sobre outras religiões ou saber com propriedade sobre o que eles estão falando. Falam verdadeiros absurdos sobre a umbanda e o candomblé. A umbanda é muitas vezes vista como a ‘religião da ralé da sociedade’, mas não é verdade. Essa religião é de todos, para pretos, para brancos, para todos que estejam dispostos a conhecer. Os cristãos, por exemplo, encontraram uma divindade diferente entre os orixás africanos. Essa divindade se chama ‘Exu’, mais ou menos como o Macunaíma brasileiro, não diria desprovido de caráter, mas sim um orixá diferente. Nós temos outra história, não como a Católica Apostólica Romana. Como não identificaram essa entidade no catolicismo, a igreja, pura e simplesmente, começou a chamar, incorretamente, de ‘Diabo africano’. Exu não é o Diabo. Mas isso tudo só serviu para tentar que nós fôssemos desacreditados de todas as formas.

Como surgiu a iniciativa de abrir o Santuário Nacional da Umbanda para praticantes de diversas religiões afro-ameríndias, incluindo o Candomblé?

Inicialmente, eu não era umbandista, e cresci em torno de pessoas que praticavam o candomblé, que me ajudaram muito. O culto do candomblé e da umbanda é envolto em oferendas para os diferentes orixás. Nós abrimos portas para qualquer religião afro que desejasse ter um espaço junto à natureza para fazer o seu culto. Esse é o objetivo, não exclusivamente para umbanda ou somente para o candomblé. Nós recebemos aqui, com bastante frequência, praticantes de todos os diferentes cultos. E seguimos por mais de meio século desse modo, entre dificuldades e alegrias.

Como essas iniciativas de recuperação e preservação ambiental realizadas no Santuário Nacional da Umbanda contribuem para a conservação da biodiversidade local e para a conscientização ambiental da comunidade umbandista?

Em nome da família umbandista, eu pretendia recuperar o verde da região onde está o Santuário. Depois de muita insistência, na época, eles (da Prefeitura de Santo André) me deram autorização provisória para recuperar a natureza daqui. Isso faz mais de 60 anos. Recuperei o verde e os animais da região, e melhor do que o pessoal que cuidava do meio ambiente. Nossa preocupação com a natureza é determinante, quando começamos era só pedra, hoje temos tucanos, macacos e outras espécies vivendo nesse espaço. O Santuário encerra as atividades às 16h, justamente por causa da preocupação ambiental, para que os animais tenham período de convivência tranquila no espaço. A recuperação ambiental aqui, posso dizer, foi total e com certeza continuaremos com esse processo. 

Em seus mais de 50 anos de atuação, o Santuário é tombado pelo Estado de São Paulo por causa da sua importância religiosa. Em sua opinião, qual é o potencial turístico e cultural do Santuário Nacional da Umbanda para a região do Grande ABC?

Eu considero o Santuário como o ponto turístico mais importante da cidade de Santo André. Também garanto que é o local religioso mais visitado na região. Nós recebemos gente do Brasil e do mundo inteiro. Um dos nossos frequentadores está inaugurando um terreiro em Tóquio e vieram buscar conhecimentos com a gente. Já temos frequentadores que abriram terreiros em Londres, em Portugal, e outros ao redor do mundo. Quando houve o fechamento da estrada principal do Santuário, recebemos via internet o apoio de pessoas da Islândia em um abaixo-assinado que fizemos para recuperar o acesso para a estrada. Recebemos muitos visitantes também em nosso site que são de fora do Brasil.

Além de sua atuação na divulgação da umbanda, como sua trajetória como jornalista e radialista ajudou na propagação da religião?

Comecei fazendo textos e narrações para propagandas na rádio. Me tornei locutor muito jovem na Rádio Excelsior, onde fiz o primeiro slogan deles, que era: ‘Excelsior, o maior auditório do Brasil: uma poltrona em cada lar.’ Logo, percebi que estava na hora de termos um programa radiofônico focado na cultura afro-brasileira. Já havia feito um trabalho com a Inezita Barroso e tinha muito conhecimento sobre o candomblé, especialmente na periferia do Rio de Janeiro. Quem me achou nessa época foi uma outra folclorista chamada Laura Dellamonica, que fazia um programa chamado Pregões da Minha Terra, e resolveu colocar algumas canções de candomblé que eu ensinava para ela. E assim a gente foi se colocando. Depois, fiz uma proposta para uma rádio de São Caetano para fazer uma programação afrobrasileira. Fiz um programa musical gratuito que toda a renda era revertida para a emissora e com isso consegui um horário durante o dia para fazer este programa informativo sobre a umbanda.

Como se iniciou a Federação de Umbanda do ABC?

Começou com uma pequena loja de artigos de umbanda que servia primeiramente para sabermos onde estavam localizados os terreiros e quantos eram. Começou lá em São Caetano e começamos a visitar os terreiros. Como bom repórter, tinha um ‘gravador desodorante’ debaixo do braço e para todo lugar que eu fosse, levava o meu gravador. No terreiro, fazia algumas perguntas para as pessoas e colocava a entrevista no meu programa de rádio.

Considerando o aumento dos casos de intolerância religiosa no Brasil, como você analisa o papel das lideranças religiosas na promoção da tolerância e no combate a esses ataques?

Procuro conversar com outros líderes religiosos sempre que possível. O Cônego José Bizon, grande conhecedor de diversas religiões, já trouxe seminaristas para conhecer o Santuário. Também já fizemos muitas doações para instituições, e muitas delas eram ligadas a igrejas. Porém, infelizmente, há muitas entidades religiosas que não querem essa proximidade e fazem tudo o que podem para se manter afastadas das outras. 

Poderia contar sobre seus livros e como eles contribuem para o entendimento e a valorização da umbanda?

Eu achava que a umbanda estava no rodapé da sociedade, desprezada por todos. E muitas pessoas acham isso. Então, coloquei na cabeça que estava na hora de alguém fazer algo pela religião e me senti na obrigação de fazer algo. Foi aí que comecei a escrever os meus livros. E meu objetivo não é lucrar com isso, não quero ganhar dinheiro com minhas obras. Quero apenas passar à frente minha visão e conhecimento sobre a umbanda, e que isso consiga alcançar cada vez mais pessoas, independentemente da religião.

Como você enxerga o futuro do Santuário Nacional da Umbanda em termos de crescimento e impacto na comunidade local e nacional, e quais são os planos para fortalecer ainda mais a inclusão, a diversidade religiosa e as iniciativas de preservação ambiental no espaço?

O conhecimento está ocupando um lugar jamais visto na humanidade. Com a educação aumentando. Hoje temos muitas pessoas educadas, o que não era visto antigamente. Eu sonho e acredito que em um futuro não tão próximo, as religiões vão se aproximar. Se Deus é tudo isso que nos ensinaram, não há razão para a gente se separar por causa dele. A causa de Deus é para unir, não separar, todos somos irmãos. Não podemos ajudar Deus prejudicando quem quer que seja, e procuro realizar a minha parte de forma positiva, e espero que um dia todos possam fazer também.




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