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‘8 e 1/2’ de Fellini ganha edição especial em DVD
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
30/10/2003 | 20:46
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Esteve recentemente em cartaz no CineSesc, em São Paulo, o documentário Fellini – Eu Sou um Grande Mentiroso, de Damian Pettigrew, que gravou dez horas de entrevista com o diretor italiano Federico Fellini (1920-1993) meses antes de ele morrer há 10 anos, em 31 de outubro de 1993. O ‘mentiroso’ do título é uma afirmação de Fellini, “fabricante de inverdades por vocação” como admitiu em outras biografias; criador do universo felliniano, como prontamente reconhecemos ao admirar seus filmes. Este mês, chega às lojas o DVD em versão para colecionador de uma dessas mentiras fellinianas mais supostamente autobiográficas, Fellini 8 e 1/2 (Otto e Mezzo, Itália, 1963, Versátil Home Video), edição especial de 40 anos de lançamento, em versão remasterizada e em formato widescreen, para TV de tela plana.

Mais ou menos na metade de sua vida, Fellini teve um surto de falta de inspiração. Produtores aguardavam ansiosos a nova obra do gênio, equipe de filmagem já celebrava o início daquele que seria a nova obra-prima, uma festa foi organizada...e Fellini não sabia o que iria filmar. Tergiversava, respondia sem nexo sobre sua “próxima obra” e assim, “mentia” sobre o filme que não sabia se realizaria.

Ou melhor, a inspiração era a própria falta dela. Em 8 e 1/2, Marcello Mastroianni é Guido, um diretor de cinema com tudo pronto para filmar mas sem uma história, às voltas com evocações de momentos marcantes de sua vida, sua amante perua, a mulher de longo casamento, e os produtores que insistem em saber o que ele vai filmar. Guido, que também assume o apelido de Snáporaz, é um artista diante da página em branco, uma mistura de Samuel Beckett com Mallarmé. Mas é a pintura a inspiração principal do cinema de Fellini. O que o motiva é fotografar o ar, pinceladas que formam um filme. A história entra por acaso para entremear estas cenas criadas. 8 e 1/2 é a síntese de um autor e o intermezzo da produção autoral no cinema, combinando a densidade da literatura com a poesia da pintura. Aquilo que o cinema amadurecido poderia vir a ser.

Fellini costura o fazer cinema com o inferno da consciência, oscilando entre uma sessão desordenada de psicanálise e um exame de consciência. 8 e 1/2 é melancólico e cômico, às vezes fúnebre e essencialmente onírico. “Talvez seja, no fundo, o texto de um filme que não realizei”, disse Fellini. Ele era malicioso em suas respostas e costumava abstrair explicações sobre sua arte ou técnica. Ao responder uma pergunta sobre quando teria perdido a virgindade, disse que foi aos 8 e meio. Mais uma de suas inverdades?

O filme começa com um delírio, um pesadelo de Guido. Despertado, faz um exame clínico que lhe recomenda uma curta temporada em uma estação de tratamento de água. Sua amante (Sandra Milo) vai ao seu encontro, enquanto produtores do filme esperam sua decisão de começar a filmar, adiada por 15 dias. Depois, chega sua mulher (Anouk Aimée) e o casamento de anos a fio começa a ser avaliado. Guido também está à procura da criatura ideal, a mulher idealizada (Claudia Cardinale) que se materializa enquanto cuida de sua estafa em uma fantasmagórica estação de águas.

Entre as seqüências célebres estão reminiscências da infância de Guido, quando fugia de um colégio religioso com colegas para ver uma volumosa prostituta dançar uma mal ensaiada rumba na praia, e a cena em que Guido está em um harém, com todas as mulheres de sua vida, tratadas com chicote ao se rebelarem contra o único homem da casa. O balé final com todos os personagens, burlesco, ao som da música circense de Nino Rota, sob a plataforma de lançamento de uma nave espacial é uma marca registrada do sonhador Fellini.

Mas não era esta sua primeira opção de fim. O diretor queria ver Guido em um trem repleto de mulheres e os demais personagens do filme, mas atendeu a uma sugestão do produtor, confessando em um dos textos disponíveis no DVD, que de vez em quando, os produtores acertam. A cena imaginada por Fellini foi usada depois em Cidade das Mulheres. O DVD traz ainda o documentário Fellini Auto Retrato, feito para a TV italiana RAI quando o diretor estava fazendo A Doce Vida e Oito e Meio, e um texto de Fellini sobre Mastroianni, ator que lhe encantava ver como seu alter-ego. A Versátil possui dez títulos de Fellini em catálogo – o 10º também chegou este mês, Os Boas Vidas.

“Sou uma espécie de mágico”, disse o diretor italiano no documentário Eu Sou um Grande Mentiroso. Por sua vez, o escritor Italo Calvino afirma no mesmo filme que artista é aquele que revela o grão de verdade escondido no fundo de cada mentira. Como arte é ficção, o artista cria a mentira que revela a verdade. Arte seria reflexo da coisa real, e reflexo nunca é a coisa real, mas invenção humana. Inventando o reflexo, o homem pode controlá-lo e infundir nele qualidades humanas. Mas essa operação continua sendo uma mentira, e eram essas que Fellini adorava contar.




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