Cultura & Lazer Titulo
Em Rio Grande, escultores trabalham por intuição
Nelson Albuquerque
Do Diário do Grande ABC
26/06/2004 | 17:32
Compartilhar notícia


Seres de milhões de anos povoam o imaginário de José Lopes da Silva, 66 anos. Em sua modesta casa, em Rio Grande da Serra, o soldador mecânico aposentado começou a talhar em madeira as figuras criadas em sua mente. O resultado é um acervo com cerca de 200 esculturas, com acabamento rústico e imagens que remetem à arte primitiva. Tudo feito de forma intuitiva.

Nascido em Viçosa, Alagoas, Silva começou aos 12 anos a trabalhar na indústria açucareira. Casou-se e veio para São Paulo em busca de vida nova e se instalou em Rio Grande da Serra. Continuou a obter o ganha-pão como operário de indústrias, até aposentar-se por invalidez (problema de pressão arterial) no início da década de 1980. Descontente com a paralisação forçada, abriu um botequim, que não foi para frente por falta de movimento.

Em 1986, numa pescaria com amigos, Silva tirou das águas o seu primeiro “ser pré-histórico”. “Jogamos a tarrafa e puxamos esta raiz (apontando para a escultura). Trouxe para queimar na churrasqueira. Na hora que fui cortar, bati o machado e já me arrependi. Achei que ela tinha algum formato e fiquei trabalhando nela”, conta. Da raiz, surgiu O Homem da Floresta, com a qual recebeu o prêmio Banco Real de Talentos da Maturidade.

A partir dessa peça nasceu o escultor José Lopes da Silva, que continua a cada dia aumentando seu acervo esculpido em troncos de laranjeira, figueira, goiabeira, eucalipto e peroba, entre outras madeiras encontradas próximas de sua casa. “Não arranco nada da natureza, só pego madeira que já está por aí”, afirma.

Seu antigo botequim se transformou em ateliê e espaço expositivo. Estão ali espécies de carrancas e animais que não encontramos nos livros. “São figuras do passado, do jeito que eu imagino”, diz Silva.

A arte que brotou espontaneamente parece ter ligação com obras de povos primitivos. “Nunca vi essas coisas (as figuras de suas esculturas) em livro nenhum”, garante o escultor, que é analfabeto. Silva não copia nem a si mesmo, por isso não há nenhuma figura repetida: “Sou criador, não sou copiador”.

Detalhe: as obras não estão à venda. “São relíquias minhas. Vão ficar aí para o resto da vida”, diz. Seu sonho é fazer um vídeo e um livro sobre seu trabalho.

‘Tenho isso na minha vida’ - Um talento está adormecido há quatro anos em Rio Grande da Serra. Por falta de incentivo e oportunidade, o artista plástico Juscelon Bispo Reis, 43 anos, interrompeu seu trabalho de esculpir madeira. Com algumas de suas obras, ele presenteou amigos. Outras ainda estão em sua casa, onde mora com a mulher Valdirene e três filhos, Jonas, Endrew e Luan.

O próprio Juscelon garante que sua arte voltará algum dia, da mesma forma espontânea como nasceu. “Não sei como tive inspiração, é um mistério até para mim”, conta o escultor. De família humilde, ele não ganhava brinquedo quando criança. “Eu fazia meus próprios brinquedos, com madeira”, diz.

Ele tem o 2º grau completo, mas nunca estudou arte, sequer fez um curso para aperfeiçoar suas técnicas. “Existe uma infinidade de coisas que preciso aprender. Estou engatinhando como artista”, afirma.

Mas, para Juscelon, ainda existe uma luta anterior. “No momento estou desempregado”, diz. Sempre trabalhou como serralheiro, mas fala que seu grande desejo é ser marceneiro. “Meu forte é a madeira, tenho isso na minha vida”, afirma o artista.

As esculturas de Juscelon têm formas instigantes e acabamento refinado. Tudo feito em uma oficina bastante simples, de 4m², atrás de sua casa. “Tenho até vergonha de mostrar”, diz o escultor.

Suas obras já estiveram em algumas exposições, entre elas o Festival de Inverno de Paranapiacaba e uma mostra na livraria andreense Alpharrabio, uma das que mais gostou de fazer. As chances foram minguando e ele chegou até a perder oportunidades importantes, inclusive em espaço respeitado de São Paulo, porque não tinha condução para levar suas obras. Não conseguiu o apoio da Prefeitura.

O Departamento de Cultura da cidade não soube nem informar o paradeiro do artista. Apenas com o nome do bairro em mãos – Jardim Guiomar –, a reportagem do Diário valeu-se de informações dos moradores locais para chegar à última casa do lado esquerdo de uma ruazinha de terra, a mesma na qual Juscelon mora desde os 11 meses de idade, quando veio da Bahia.

Segundo ele, Rio Grande da Serra tem outras pérolas: “Por aqui tem muita gente boa escondida, artistas de talento. Sinto até uma certa indignação em falar nisso”.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;