Evento completou uma década neste mês, e foi um dos precursores na expansão da cultura de rinhas freestyle entre MC’s na região; desde sua criação, festival vive embates com a Prefeitura
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“A rua é nois. O corre é nois. Deixa a periferia soltar a sua voz”, gritava o público eufórico na última terça-feira, na Praça da Matriz, região histórica de São Bernardo. No local, as pessoas assistiam duelos de freestyle (estilo improvisado de rimas) entre MC’s durante a 399ª edição da Batalha da Matrix, um dos maiores eventos musicais em praça pública do Estado.
Há dez anos, completados neste mês, o evento cultural reúne semanalmente uma média de 800 espectadores por noite, em sua maioria oriundos de comunidades de diversos municípios do Grande ABC e também da Região Metropolitana de São Paulo. A Batalha foi fundada em 7 de maio de 2013 por um grupo de amigos denominado Sociedade Alternativa de Campom, que tinha o objetivo de reunir pessoas interessadas em fazer freestyle na cidade.
“A Batalha da Matrix é um espaço onde os jovens se encontram para curtir o rap, viver a cidade e serem livres. Atualmente é uma das maiores manifestações culturais de São Bernardo, tendo em vista a escassez de eventos voltados para a população preta e periférica de São Bernardo”, diz um dos organizadores da Batalha, Eder Alexandre Todesco, 35 anos.
Grandes nomes do cenário musical do País já passaram pela Praça da Matriz, como os rappers Dexter, Thaíde (que gravou um clipe no evento), Sandrão RZO, Rodrigo Ogi e Emicida, que marcou presença por duas vezes, em 2015 e 2019.
Revelação do freestyle, o diademense da favela Naval, Winnit, 23, descobriu seu talento para improvisar rimas na Batalha da Central de Diadema – primeiro do tipo na região – e possui forte ligação com o evento de São Bernardo. “Sou parte do organismo vivo que é a Batalha da Matrix, é um lugar que faz parte da minha história. As batalhas de rima são meu ensino superior, comecei a rimar no meio do ensino médio e me encontrei pessoal e didaticamente. Logo se tornaram, além do meu refúgio, minha profissão”, conta Winnit, que venceu duas importantes competições, entre elas a maior liga de freestyle do mundo, a FMS (Freestyle Master Series).
O vice-campeão do Duelo de MCs Nacional de 2022, maior competição de freestyle do Brasil, Guilherme Oliveira Soares, 23, mais conhecido como Youngui, frequenta desde 2019 a Matrix, e conta sobre a influência deste tipo de manifestação cultural na sua vida.
“As batalhas me agregaram muita coisa boa, me fizeram buscar mais conhecimento, a entender mais sobre a minha cultura, minha pele e também sobre a importância de segurar um microfone na mão. O freestyle me salvou da depressão e da criminalidade, assim como também salvou outros jovens”, pontua Youngui, morador da Vila Ema, Zona Leste da Capital.
Ao lado de outros nomes da cena do hip-hop nacional, os dois Mc’s marcarão presença na edição 400º da Batalha da Matrix, que ocorre na próxima terça-feira, a partir das 19h30.
EMBATES INSTITUCIONAIS
Em uma década de atuação, a Batalha da Matrix possui diversos capítulos da sua história sobre episódios de repreensão com a PM (Polícia Militar) e a Prefeitura de São Bernardo, conforme explica o organizador Todesco.
Para tentar coibir a participação dos jovens no evento, a PM e a GCM (Guarda Civil Municipal) realizavam operações na Praça da Matriz durante as apresentações. Bombas de gás lacrimogêneo e revistas nos frequentadores eram ações constantes das forças de segurança.
“As agressões físicas ocorriam com frequência antes da pandemia. Ao longo desses anos, tentamos todo tipo de diálogo com a Prefeitura para poder realizar o evento, que é um direito nosso, já que é um espaço público. Quando voltamos a fazer as batalhas presencialmente, em 2022, o Paço passou agir de outra maneira e buscou aparatos institucionais e jurídicos para tentar proibir a nossa manifestação”, denuncia.
Segundo o organizador, como medidas, a gestão do prefeito Orlando Morando (PSDB) multou em mais de R$ 20 mil dois organizadores do evento por conta do volume do som, vetou o uso da energia elétrica no espaço e reforçou a presença de guardas da GCM durante as apresentações.
“Não temos nenhuma abertura para dialogar com a Prefeitura. Eles alegam que o volume do som ultrapassa o permitido pela legislação municipal, porém já realizamos a medição em uma residência ao entorno e o volume nem chega ao estipulado. Falam que os frequentadores urinam na rua, porém já solicitamos um banheiro químico ou até mesmo um permanente e não fomos atendidos. Outro argumento que pontuam é o uso de drogas e bebida alcoólica por menores de idade. Não temos controle dessas situações, porém não estimulamos e também orientamos os jovens sobre o assunto durante as batalhas”, finaliza.
Sobre os entraves com o poder público, o Mc Youngui complementa. "A polícia e o governo quererem intervir o nosso movimento só prova que somos uma ameaça para eles, não querem ver a favela revolucionar, só querem vê-la na televisão como motivo de piada ou tragédia".
Procurada, a Prefeitura de São Bernardo não quis se manifestar sobre o assunto.
DISPUTA CULTURAL
O autor do livro Rap, Cultura e Política: Batalha da Matrix e a estética da superação empreendedora, Felipe Oliveira Campos, conhecido como Choco, destaca a ausência de diálogo e as ações promovidas pela Prefeitura de São Bernardo para tentar impedir a realização da batalha como parte de uma disputa por ocupação cultural na cidade.
“É a tentativa de construir uma única vertente cultural no município, de diminuir a pluralidade da população ao tentar preservar a cultura dos imigrantes italianos que chegaram na cidade no fim do século XIX e no começo do XX”. Ele destaca ainda que com o processo de industrialização do município, a partir de 1950, pessoas de vários Estados do Nordeste, de Minas Gerais, do Paraná, migraram para São Bernardo para trabalhar em indústrias.
“Em 1950 eram 26 mil habitantes, em 1980, apenas 30 anos depois, esse número aumentou quase 17 vezes e chegou a 425 mil. Com a chegada desse novo público houve um caldo cultural gigantesco, e a cidade passou a ser mais múltipla. Esse processo da dinâmica da cidade é uma disputa pela memória, e é uma forma retrógrada de entender espaço público, direito à cidade e produção cultural no mundo contemporâneo”, reforça Choco, autor da tese de mestrado Cultura, Espaço e Política: um estudo da Batalha da Matrix de São Bernardo e pesquisador do documentário AmarElo: é tudo pra ontem, do Emicida, e do filme Racionais MC''''s - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo.
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