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'Ler é dar sentido à própria vida'

Entrevista da Semana com Ignácio de Loyola Brandão, imortal da Academia Brasileira de Letras

Joyce Cunha
Diário do Grande ABC
19/09/2022 | 08:39
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Divulgação


Um imortal que teme a morte e, como poucos, aprecia a vida. Ignácio de Loyola Brandão, 86 anos, integrante da Academia Brasileira de Letras e detentor de prêmios como Jabuti e Machado de Assis, estará no Grande ABC no sábado para lançar o livro Deus, o que quer de nós? e participar de uma das mesas de debate da 1ª Flirp (Feira Literária de Ribeirão Pires). Em entrevista exclusiva ao Diário, que é apoiador oficial do evento, Loyola antecipa os destaques de sua participação na atividade, conta sobre a inspiração de sua obra e avalia, com seu tom realista e poético, o cenário atual da literatura brasileira.

Raio-X

Nome: Ignácio de Loyola Brandão Idade: 86 anos Local de nascimento: Araraquara (SP) Hobby: colecionar cadernos diferentes e postais insólitos

Local predileto: Quando posssível, dinheiro sobrando, passear pelos lagos de Berlim, onde vivi nos anos 1980

Livro que recomenda: Independencia do Brasil ­ As mulheres que estavam lá, de Heloisa Starling e Antonia Pellegrino 

Personalidade que marcou sua vida: Anouk Aimée. Mas poderia ser Cyd Charisse. Ou Giulieta Masina. E tambem Eliane Lage.

Profissão: Escritor e jornalista.

Onde trabalha: Onde estiver. Em casa com computador. Na rua ou praça ou trem ou avião, escrevendo à mão em cadernos e cadernetas e blocos

No primeiro dia da Flirp, o senhor participará de mesa literária sobre a arte da palavra e a relação do autor e sua obra. Quais pontos devem ser trazidos a este debate?

Falarei sobre o meu processo de criação. De onde vêm as situações ou como encontrá-las. Inspiração existe ou somos nós que a fabricamos? Nada vem do céu, nenhum raio de luz desce sobre um autor. Ele é que tem de olhar a vida e capturar o assunto. O fundamental: nomes dos personagens. A importância de meus professores no fundamental (na minha época primário) e no colegial (científico). Cabe ao mediador ditar o ritmo e fazer a coisa correr. Ele deve lançar o anzol, intervir pouco, deixar o autor falar. A plateia está ali para ouvir o autor.

Ainda no primeiro dia da Feira Literária o senhor lança na região seu novo livro, Deus, o que quer de nós?. Sobre o que trata a obra?

Começa a pandemia, um casal se isola dentro de sua casa. A mulher, Neluce, é mais alerta, mais inteligente, entende que os dois terão de viver juntos, fechados, por muito tempo. Buscam modos de se suportarem. Há humor, há ironia, há sarcasmo, há loucura. No romance, a pandemia dura longuíssimo tempo, praticamente toda a população morre de Covid-19, dado o negacionismo de governantes. Neluce adverte que a vida dos dois será difícil, se amarão, se cansarão um do outro (mulheres são mais perspicazes), se odiarão, transarão, se cansarão um do outro, ficarão cada um em seu canto, acharão falta um do outro, rirão deles mesmos, se entenderão, dividirão tarefas, terão medo da morte. Neluce morre, Evaristo, o marido, se desespera, não aceita, não acredita e continua a viver como se a mulher jamais tivesse morrido. Vive do delírio, vive fatos que ocorreram há tempos na vida dos dois, confunde real e fictício, praticamente enlouquece. Todos verão o quanto de pessoas correram aos psicanalistas e terapeutas, o quanto aumentou a venda de ansiolíticos. E o tempo corre para trás. Relógios giram ao contrário. A história do Brasil recua, universidades, pesquisa, ciência, medicina e cultura. Tudo regride até chegarmos à pré-história. E o fim do livro traz uma surpresa. Como sair de lá? Quantos anos para chegar de volta ao tempo atual e a todas as conquistas dos brasileiros?

Eventos como este, mobilizados em torno do livro, da escrita, podem ser estímulo a novas gerações de escritores?

Desde 1975 venho percorrendo todos os Estados brasileiros atuando em feiras de livros, em bienais, em semanas literárias, falando para alunos e professores. Na verdade há no Brasil um movimento interno que luta pela formação de leitores. Os Agentes da Literatura do Ceará, as muitas Flips que explodiram por todos os cantos, as bienais de livros, o número de autores chamados às salas de aula para debater com crianças e jovens, a montagem das bibliotecas de classe de Joinville, um exemplo de luta que deu certo. Agora, deveríamos ter ministros de Educação, e isto não existe. No atual governo nenhum deu certo. O hábito da leitura deve começar na infância, em casa, com os pais, e continuar na escola, avançando. Professores, educadores, especialistas, alguns secretários de Cultura estão em cena incentivando. O maior trabalho deve ­ e tem sido feito ­ nas bases, nos cursos fundamentais.

O senhor acredita que existe um distanciamento das pessoas em relação à arte literária? Especialmente em meio à avalanche de conteúdos digitais?

O digital é concorrente? Sim, mas há muitos pontos neste Brasil em que os dois correm juntos. Não se pode ser pessimista, negacionista, nem culpar o digital de tudo. Um dos maiores problemas são as burocracias que emperram pagamentos a palestrantes, conferencistas, educadores e tudo mais, por picuinhas de leis obsoletas.

De sua trajetória, de seus 49 títulos publicados, qual o seu favorito? E por quê?

Difícil pergunta. Como escolher um entre todos os seus filhos? Cada livro é de uma época e foi movido por um momento da história. Adoro Dentes ao Sol. Ele se passa em Araraquara, minha terra. Conta uma historia real, a de um jovem que não teve coragem de enfrentar o próprio sonho e lutar por ele, e enlouqueceu. No entanto, em Zero, faço um retrato vivo da ditadura. Um livro forte, violento, desafiou a ditadura, foi proibido. Em Não verás país nenhum, escrito há 40 anos, ainda é hoje o livro mais atual em matéria de meio ambiente. Tudo que imaginei e inventei hoje é uma realidade que destrói o Brasil. E como esquecer Os olhos cegos dos cavalos loucos, um livro comovente que levei 60 anos para escrever, a fim de pedir desculpas ao meu avô? E uma doce e terna lembrança de infância com O Menino que vendia palavras, que, sendo infantil, ganhou de todos os livros adultos em 2008, sendo eleito o melhor do ano, no Premio Jabuti?

Seus livros de ficção trazem aspectos da realidade, como em Desta Terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela. O que inspira sua obra?

Fácil. Tudo ao meu lado. A realidade. Olho pela janela e copio o que vejo. Está tudo aí se oferecendo. Na fala de Ribeirão Pires darei detalhes disto. A vida está nas ruas, nos jornais, na tevê, nos bares. É só escolher o assunto. Mas lembre-se: escrever para jornal é uma coisa, escrever literatura é outra. No jornal está a frieza, o concreto, o objetivo. Na literatura entra nosso coração, alma, desvarios, maneira de ver as coisas. No jornal temos de ser frios, na literatura somos coração, paixão, empenho, sangue.

O jornalismo também está presente em grande parte de sua vida, com a passagem por diferentes veículos. Como avalia o papel da imprensa? Especialmente em momentos marcados pela polarização das ideias e dos debates?

A imprensa é o espelho do que somos. Ela nos reflete. Muitas vezes nos envergonhamos do que lemos, e nos colocamos contra a imprensa, apavorados. Apenas por estarmos envergonhados ao nos reconhecermos ali, nas notícias, no que os jornais refletem.

Em sua avaliação, o que falta para o Brasil ser um país de leitores?

Falta vergonha na cara dos responsáveis pela escola. Falta a estes educadores terem projetos, visão, paixão. ler é paixão, amor, descoberta do maravilhoso, mergulhar no fantástico, dar um sentido à própria vida, não estar nunca só.

Em suas obras, a dura realidade do povo é tema muito presente. De suas observações sobre a realidade, sua inspiração, e dentre tantos dilemas, o que mais chama sua atenção?

O que mais chama a atenção é um País que poderia ter sido e não foi. Por culpa de vários governos, todos medíocres. Nenhum se importa com o País, com o povo, com os problemas. Hoje o pior é o meio ambiente. O descaso. Estamos nos suicidando.

A morte também está presente, inclusive com sua própria experiência em A Veia Bailarina. Como o senhor encara a morte?

A morte. Não quero morrer. Sei que é impossível. Pior do que morrer é ir se desintegrando lentamente, percebendo que está indo embora. Mas odiaria viver 100, 150, 200 anos. Pior que a morte é a solidão absoluta.

E como encara a vida?

A vida é para ser vivida, desfrutada, aproveitada. Cada minuto de vida é fundamental. Mas o que fazer com esse minuto? Aproveitar? Como? Deixar passar? Contemplar? Absorver tudo que for possível.

Para o senhor, o que é e o que significa ser um imortal da literatura brasileira?

Ser imortal? É um momento. Algo que atingimos. Um posto para fazer alguma coisa pelo Brasil, pela cultura, pela literatura. É uma ilusão.

 




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