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Morre o escritor Arthur Miller
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
12/02/2005 | 15:51
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Calou a pena que fez os Estados Unidos encararem o século XX como uma era de decepções, varridas sem cerimônia para debaixo do tapete. Morreu na noite desta quinta-feira, aos 89 anos, o dramaturgo e escritor Arthur Miller, em sua casa na cidade de Roxbury, estado de Connecticut. A causa do óbito foi a combinação de pneumonia e de problemas cardíacos causados por um câncer que acometia o autor já há alguns anos. A morte põe termo a uma série de idas e vindas de hospitais e clínicas, por conta de seu debilitado estado de saúde.

Responsável por textos como A Morte do Caixeiro-Viajante e As Bruxas de Salem, Arthur Miller obteve o raro feito de comparecer tanto nas publicações destinadas ao estudo da criação intelectual quanto nas colunas sociais. Pudera: foi casado, entre 1956 e 1961, com ninguém menos que Marilyn Monroe, provavelmente a maior das bombas-relógio de sensualidade que o cinema pôde comportar.

Não foi nenhum idílio o relacionamento do casal. Marilyn, sabe-se, exibia um comportamento auto-destrutivo, agravado por um suposto aborto espontâneo que frustrou os planos do par de gerar um filho. Aí a coisa derrocou: a atriz platinada submergiu de vez nos barbitúricos narcóticos que acabaram registrados como a causa de sua morte, em 5 de agosto de 1962, aos 36 anos.

Pode não ter sido o melhor casamento que Hollywood abençoou, mas teve seus frutos. Miller escreveu exclusivamente para ela o papel da Roslyn Taber de Os Desajustados (1961), de John Huston. É o filme no qual Marilyn, com aqueles lábios capazes de fazer o sujeito perder a compostura, diz que se é para ficar sozinha, "que isso seja uma escolha minha". E, curiosa e coincidentemente, é o último filme tanto de Marilyn quanto de Clark Gable, que padeceria de ataque cardíaco dias após o término das filmagens.

O caso Marilyn/Miller ainda rendeu a peça After the Fall (Depois da Queda), escrita em 1964, nove anos depois de um auto-exílio criativo do dramaturgo. A personagem Maggie, segundo consta, teria sido inspirada no comportamento da sex symbol com quem foi casado. O escritor teve ainda outras duas mulheres, Mary Slattery e a fotógrafa Inge Morath.

Arthur Asher Miller nasceu em Nova York, a 17 de outubro de 1915. Descendente de judeus, sentiu na carne a depressão econômica de 1929, que levou à falência a indústria de roupas femininas que seu pai administrava. Empobrecida, a família transferiu-se para o Brooklyn.

Formado em jornalismo, o autor afirmou mais de uma vez que foi a leitura de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, que o levou a tentar a sorte nas letras. Arriscou-se no teatro e escreveu para a Broadway o texto The Man who Had All the Luck (O Homem que Possuía Toda a Sorte), em 1944. O espetáculo, inaugural de sua carreira literária, não foi exatamente um sucesso: saiu de cartaz ao fim de quatro encenações.

Também nesse ano, Miller cumpriria um itinerário entre acampamentos militares dos Estados Unidos, que muniam-se de estratégias e ânimo para a então corrente Segunda Guerra. A peregrinação resultaria na peça The Story of G.I. Joe (A História de G.I. Joe). Em seguida, redigiria Focus, seu primeiro e único romance, detido sobre a questão do anti-semitismo que ensaiava mostrar a cabeça na escotilha após a eugenia nazista.

Veio então, em 1949, A Morte do Caixeiro-Viajante, sua consagração como ficcionista, com os dois pés na análise da desestruturação civil causada pelo crash dos anos 1930 e pela Segunda Guerra. O texto narra as últimas 24 horas do vendedor Willy Loman, recém-demitido e consternado mediante a situação econômica a que estarão sujeitos sua mulher, Linda, e o filho, Biff. A apresentação no texto do angustiado protagonista diz tudo: "Não diga que ele é um grande homem. Willy Loman nunca foi de ganhar muito dinheiro. Seu nome nunca apareceu nos jornais. Ele não é o melhor personagem que já viveu. Mas ele é um ser humano".

Divisando um horizonte outonal para sua família assim que perde o amparo financeiro do emprego, Willy Loman decide dar cabo da própria vida. Menos que um ato de desespero, o suicídio apresenta-se como uma alternativa para o não-perecimento da mulher e do filho, que poderiam gozar do dinheiro do seguro de vida que está no nome de Loman. A ruína do meio ambiente econômico, devorado por sua própria ambição, constitui para Miller a desvalorização da vida, a anulação da autopreservação. O texto, vencedor do prêmio Pulitzer, mereceu mais de 700 adaptações teatrais mundo afora e rendeu quase uma dezena de versões para TV e cinema, sendo a de 1951, dirigida por László Benedek e protagonizada por Fredric March, a mais afamada entre elas. No Brasil, a última grande montagem de A Morte do Caixeiro-Viajante deu-se em 2003, sob direção de Felipe Hirsch e com Marco Nanini no papel de Willy Loman.

Outro caso famoso que envolve o nome de Arthur Miller foi sua convocação para depor no comitê de investigações anti-comunistas do Congresso norte-americano nos anos 1950. No depoimento, ele negou ser um comunista da gema, mas admitiu ter comparecido a algumas reuniões do Partido e ser signatário de protestos e manifestos com inclinações socialistas. A experiência de quase ingressar na lista negra do senador McCarthy desencadeou a criação da peça As Bruxas de Salem, em 1953. Quem assistiu ao filme homônimo de Nicholas Hytner, lançado em 1996 e roteirizado pelo autor em pessoa, conhece seu conteúdo de parábola política. Miller descreve, com olhar de soslaio para o macarthismo, uma caça às bruxas ocorrida em Massachusetts em 1692, baseado nos documentos de um julgamento de feiticeiras e do fazendeiro John Proctor, acusado de bruxaria. Sentenciava a paranóia, capaz de cegar políticos e decapitar artistas: "A consciência já não é mais um problema pessoal; é agora um problema estatal".

O descontentamento implantado na psiquê da sociedade norte-americana. Foi esse o estofo da obra de Miller mas também um alerta desse autor que, indubitavelmente, freqüenta o top ten da dramaturgia norte-americana, ao lado de Tennessee Williams, Edward Albee e Eugene O’Neill. Engano imaginar que seu pensamento está circunscrito a décadas passadas, quando as frustrações nacionais por ele indicadas há 40, 50, 60 anos manifestam-se ainda hoje e parecem querer se estabelecer como um carma moral. Basta apreender o que Arthur Miller disse em entrevista para o jornal francês L’Express em 2002, indagado sobre o futuro de seu país natal: "A democracia está ameaçada pelo governo Bush".




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