Cultura & Lazer Titulo
Lição de civilização à civilização
Ricardo Lísias
Especial para o Diário
29/08/2006 | 21:03
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Octavio Paz não teve o mesmo espectro de atuação que Jorge Luis Borges: o mexicano não praticava a prosa de ficção como meio por excelência para se manifestar. No entanto, Paz foi um dos maiores poetas da América Latina e, ao mesmo tempo, um de seus ensaístas mais agudos e esclarecidos. Os Filhos do Barro, ensaio de fôlego sobre alguns dos principais artistas que nos moldaram, não perde nada para os textos formadores da modernidade. Lá estão as típicas incertezas do último século, transformadas em ferramenta lírica. No próximo encontro dos Seminários Avançados sobre a Modernidade Latino-americana iremos discutir não só o alcance de sua obra como a atualidade de algumas idéias que podem explicar muito da posição contemporânea da América Latina no mundo.

Outro texto ensaístico notável é O Labirinto da Solidão, análise da sociedade mexicana que acabou se tornando, aos poucos, um comovente texto sobre a (não) identidade latino-americana. A sombra norte-americana, presente em toda a região, mas extremamente forte, por razões evidentes, no México, é uma das tônicas centrais do livro. Assim, a análise começa com uma interpretação dos pachucos, uma espécie de identidade assumida por alguns mexicanos que vivem nos Estados Unidos, mas adotam hábitos sociais e vestimentas que não caracterizam nem uma e nem outra sociedade. São rapazes que representariam uma espécie de papel indefinido que incomoda muito ambas as tradições. Talvez eles encarnem o muito contemporâneo “lugar nenhum”.

A identidade estranha e ao mesmo tempo irritante desses jovens torna-os ao mesmo tempo vítimas e delinqüentes, levando-os a ter uma relação ambivalente com a sociedade. Não é esse, claro, um traço determinante da América Latina. Mas sem dúvida os dois espectros opostos foram muitas vezes utilizados para nos caracterizar, sobretudo pelas nações centrais: ou éramos – e de fato, mas em parte apenas, éramos mesmo – vítimas da modernidade européia fraturada; ou ao mesmo tempo acabamos vestindo a imagem de bandidos responsáveis pela propagação de idéias perigosas. Aqui, é preciso lembrar que Paz escrevia no bojo das grandes manifestações de esquerda da segunda metade do século XX. Todas essas manifestações foram sufocadas ou por regimes militares violentíssimos, ou por uma espécie de degradação das formas de vida partidária democrática. É esse o próprio caso do México com a longa permanência do PRI no poder.

Possivelmente hoje tenhamos perdido essa posição de delinqüentes para os países árabes do Oriente Médio. Aliás, o caráter de vítimas também já não nos descreve com perfeição: está claro que a maior vítima das fraturas modernas, de longe e sem possibilidade de competição, é o continente africano.

A América Latina (e isso Paz escreveu em um complemento a O Labirinto da Solidão) fica na posição de “quase”: foi por pouco que não alcançamos o lugar de desenvolvidos, muito embora não nos falte muito, atualmente, para cairmos de vez no abismo. Somos, sem nenhuma sombra de dúvida, o continente que vive no limiar.

Para além das óbvias qualidades estéticas da obra de Octavio Paz, resta de seu pensamento uma espécie de honestidade inabalável com o próprio lugar. Consciente de sua posição de mexicano, como aliás tinha Borges a de argentino, Paz não precisou facilitar a reflexão e, com isso, levou uma lição de civilização à civilização, demonstrando que qualquer lugar pode ser transformado. Talvez seja esse o bom destino latino-americano.

Ricardo Lísias, 31 anos, é mestre em Literatura e História pela Unicamp e doutor em Literatura Brasileira pela USP. É escritor, ensaísta e professor. Escreveu, entre outros títulos, os romances Cobertor de Estrelas (Rocco, 1999), Dos Nervos (Hedras, 2004) e Duas Praças (Globo, 2005).




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