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Sao Paulo ouve o samba de Zeca Pagodinho
Do Diário do Grande ABC
28/01/1999 | 18:08
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O título - ou seria posto? - de anjo da guarda foi proposto por Moacyr Luz e Aldir Blanc, no samba O Anjo da Velha Guarda. É narrado, o samba, na primeira pessoa. O homenageado, tao tímido quanto modesto (mas, com certeza, sabe-se merecedor da homenagem), jamais o cantará. "O terno branco parece prata", começam os versos, "e a fita no peito diz que eu sou daqueles que vao pra Maracangalha rever Anália: eu vou. "

Nao existe, naturalmente, a peregrinaçao até a Maracangalha mítica de Dorival Caymmi - o samba nasceu lá na Bahia, como nos lembrava Vinícius de Morais, mas mudou-se para o Rio Janeiro, onde nasceu Zeca Pagodinho, e nele ganhou novo formato. Existem, no entanto, os muitos palcos, Brasil afora, nos quais o guardiao faz sua pregaçao de bom humor e beleza.

Neste fim de semana, Zeca estará em dois palcos paulistanos. De sexta a domingo, no Tom Brasil, como figura central do projeto Samba no Tom, tendo como companhia os compositores e cantores Arlindo Cruz e Sombrinha, titulares do fundo de quintal (e do grupo Fundo de Quintal) em que Zeca começou a mostrar sua arte, ainda amador, mais a cantora maranhense Alcione e seu conterrâneo, valor novo, Zeca Baleiro (no novo disco de Baleiro, a ser lançado em breve, Pagodinho faz uma participaçao).

Na madrugada deste sábado para domingo - o horário previsto é o das 3h30 -, Zeca estará no Sesc Pompéia, como uma das atraçoes do projeto Rio!, que, durante todo o fim de semana, homenageará o Rio de Janeiro - seus músicos e sua música, sua gente, sua paisagem.

O disco mais recente de Zeca Pagodinho foi lançado em novembro, um trabalho ainda mais radicalmente voltado para as raízes do samba carioca do que os anteriores - que já eram discos radicais. O CD é dedicado a Heitor dos Prazeres, patriarca do samba, cujo centenário se comemorou no ano passado.

Mesma linhagem - Para lembrar: Heitor dos Prazeres, autor do samba seminal Gosto Que me Enrosco (de 1927, em que Sinhô aparece numa discutida parceria) e da marchinha Pierrô Apaixonado (de 1936, parceria, essa de fato, com Noel Rosa), era marceneiro, como o pai (mas o pai era também clarinetista e ritmista da banda da Polícia Militar), começou a trabalhar cedo - gente pobre ainda hoje abandona os estudos para trabalhar -, foi preso por vadiagem (quando tinha 13 anos), seguiu a vida entre a Praça 11 dos negros choroes e sambistas do centro do Rio e o terreiro de Tia Ciata, onde, diz a história, ganhou forma o samba carioca.

Mais tarde, Heitor dos Prazeres fundaria a escola de samba De Mim Ninguém se Lembra e ajudaria na fundaçao de outras, como a Mangueira e a Portela. Enquanto isso, suas músicas eram gravadas sob assinatura de outros autores - uma história nada incomum. Nos fim dos anos 30, Heitor dos Prazeres começou a pintar, amadoristicamente - ele achava -, retratando as gentes do samba.

Personagem emblemático, Heitor dos Prazeres nao recebeu tantas homenagens quanto mereceria. Mas Zeca gravou dele A Tristeza me Persegue, uma parceria com Joao da Gente, samba definidor de linguagem, lançado em 1927. Assim, quando reverencia um dos pilares do gênero musical que pratica, Zeca está puxando a homenagem prestada a si por Moacyr Luz e Aldir Blanc e indicando o anjo fundador - um deles - da linhagem.

Porque as histórias, passados tantos anos, nao sao muito diferentes. Mudou um pouco o cenário - os sambistas do início do século moravam no centro carioca e hoje se agrupam nos subúrbios que evoluem às margens dos trilhos da Central do Brasil (o umbigo nacional eleito por Walter Salles para seu filme premiado).

Zeca, nascido Jessé Gomes da Silva Filho, de 39 anos, já havia feito todo tipo de biscate para bancar a vida, antes de começar a ganhar dinheiro com música. Começou a freqüentar, nos anos 70, as rodas de samba de fundo de quintal do Cacique de Ramos: reunioes informais, de sambistas e para sambistas, em que cada um mostrava um pouco de sua arte.

O novato apareceu como autor de bons partidos e como versador de muitos méritos, chamando a atençao dos titulares - entre eles, Arlindo Cruz e Sombrinha, compositores, cantores e instrumentistas que integravam a primeira formaçao do grupo Fundo de Quintal e, há três anos, resolveram partir para carreira em separado, como dupla.

A cantora Beth Carvalho, assídua das reunioes, já lançara para o sucesso as músicas de Arlindo Cruz, Sombra, Sombrinha (sao tio e sobrinho, santistas de nascimento), Marquinhos PQD, Beto Sem Braço e outros bambas do pedaço. Ouviu de Zeca o Jiló com Pimenta (parceria com Arlindo Cruz), que acabou gravando em 1983 ("Quando um rico fica alegre/ Mais um pobre se arrebenta").

Sucesso - Em pouco tempo, pela gravadora RGE, Zeca faria seu primeiro disco - e passaria a ocupar o topo das paradas com músicas alegres, maliciosas, irônicas, críticas como Judia de Mim, SPC, Casal sem Vergonha, Quando Eu Contar (Iaiá). Crônicas amorosas e comentários sociais sobre um certo tipo de gente que nao ocupa lugar de destaque em novelas de televisao, nao posa para comerciais, nao parece fazer muito mais do que engordar estatísticas.

Eleger essa gente, sua gente, como personagem principal foi, por certo, um dos motivos do sucesso popular de Zeca Pagodinho. O compositor mostrou-se, desde o primeiro momento, um artista de exceçao. Começou carreira vendendo centenas de milhares de discos, batendo recordes - é uma das maiores, digamos, bilheterias da história do samba, sem que para isso tenha contado com lobbies, pressoes econômicas, campanhas publicitárias.

No fim dos anos 80, Zeca Pagodinho entrou em baixa. Entraram em baixa, com ele, todos os verdadeiros sambistas, que foram sendo substituídos, por força de lobbies, pressoes econômicas, campanhas publicitárias, pelos assim chamados pagodeiros modernos - os grupos que "sambam" coreografias, vestem uniformes e cantam bobagens de pouca inteligência, ritmo duro, nenhuma beleza.

Para efeito mercadológico, a música desses grupos (Negritude Jr., Só pra Contrariar, Molejo, Morenos, Só Preto sem Preconceito e outros que já desapareceram e outros que surgirao e desaparecerao) foi batizada de pagode. Maldosa ironia. Até porque, para início de conversa, pagode nao é gênero musical, mas essa é uma outra conversa.

A questao é que chegou a haver uma confusao entre "pagode" - o dos outros - e Pagodinho - o verdadeiro. A força da boa música levou algum tempo, mas separou-se do joio, finalmente. Duas figuras sao fundamentais para que a separaçao se tenha dado: a cantora Beth Carvalho e o cantor e compositor Zeca Pagodinho, nosso personagem.

Foram os dois (o grupo Fundo de Quintal também firmou posiçao e houve outros baluartes, mas em linhas gerais a peteca pulou sem cair no chao da mao de Zeca para a de Beth) que se mantiveram na linha e garantiram os caminhos abertos - nao desimpedidos, mas pelo menos trilháveis - para que, finda a tempestade, outros viessem à luz. Se Luiz Carlos da Vila, Délcio Carvalho, Wilson das Neves, a dupla Arlindo Cruz e Sombrinha e tantos outros vêm conseguindo reconquistar para o samba seu lugar de direito, devem-no a Beth e a Zeca.

A história do samba tem tido personagens heróicos assim, mas o momento em que Zeca Pagodinho impôs sua linguagem deve ter sido o mais difícil de todos. Ele canta a evoluçao de uma tradiçao centenária, na contramao das teorias globalizantes (o Terceiro Mundo está sempre na contramao dessas teorias). A música de Zeca Pagondinho cultua e comenta hábitos populares que a cultura prefere fingir que nao percebe, batuca ritmos com os quais os sintetizadores nao atinam. Aliás, o bom samba, como os anjos, nao bate no chao, nao pousa: adeja.




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