Cotidiano Titulo COTIDIANO
A noite da minha cidade
Rodolfo de Souza
08/09/2016 | 07:00
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A noite da minha cidade seguia assim, meio quente, meio estrelada, prenúncio de setembro. Algo de poético no ar, inclusive, deixava aquela impressão de que nada poderia perturbar a sua calma. E eu chegava mesmo a sentir a harmonia dos elementos que compõem a natureza, imagine amigo leitor, do complexo urbano! Não, não estou enlouquecendo. Admito que soa até um tanto extravagante esta conversa, que me perdoe o distinto. Entretanto, se considerar que foi a natureza humana que criou as estruturas de concreto, por que, então, não sentir por elas o fascínio que se sente pelo campo, pela mata, pelo mar, pela circulação sanguínea... Deve ser por tudo isso, aliás, que sinto desta forma as grandes cidades.

Logicamente que procuro, em momentos como este, de suprema comunhão com o concreto e o asfalto, esquecer que este belo jardim, como qualquer organismo vivo, também hospeda um parasita que corrói as suas entranhas e, por conseguinte, as entranhas de quem deste lugar faz moradia e de onde retira o seu sustento.

Mas as notícias sobre o bicho roedor, que tiram o sono da gente que habita este universo, eu não permitia que profanassem o meu sentimento naquela noite em que, dentro do meu carro, eu deslizava devagar pela avenida congestionada pelos radares que espiam e levam diversão a alguns.

Seguia, pois, o meu caminho, ciente de que o bicho ruim espreita em cada canto para, de tocaia, tomar de assalto o cidadão só para retirar dele pequenos objetos, bobagens, às vezes. E apreensivo por saber que, com certa constância, rouba-lhe também o direito à vida. Mesmo assim, eu me recusava a imaginar aquele momento manchado pela barbárie. Por isso que, a despeito da lembrança que conduz à paranoia desenfreada, eu insistia que a noite da minha cidade continuasse assim, imaculada. Resistia de fato à ideia de que este sentimento ímpar pudesse ruir de uma hora para outra. Cheguei a me arrepender de ter me queixado, vez ou outra, da rotina ao preencher-me com a poesia daquela noite. Poesia que durou pouco.

Obedecendo, pois, à determinação do semáforo, eu comecei a parar. Tive antes o ímpeto de permanecer a uma distância considerável do veículo à frente, uma vez que percebi naquele um movimento brusco e estranho. Pude, então, testemunhar o fato que se seguiu. Tudo muito rápido. Pronto, lá estava o objeto sinistro que haveria de manchar a noite da minha cidade e fornecer inspiração para uma crônica, talvez um lamento.

De forma brutal, como é próprio dessas investidas, as feras arrancaram o motorista de dentro de seu veículo, enquanto a comparsaria se encarregava de retirar, do outro lado, a mulher com um pequeno nos braços. E, pelo tamanho do bebê, via-se que acabava de chegar a este manicômio. Tampouco desconfiava que era personagem de uma corriqueira cena de violência e também destas linhas que ora rabisco no papel virtual.

E eu perplexo, parado no meio da avenida, recusava-me a aceitar como natural do meu País o fato que transcorria bem na frente dos meus olhos incrédulos. Era a noite da minha cidade que acabava de perder o seu encanto. 

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com
E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com.




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