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Saloes da regiao ainda têm bailes de rosto colado
Reynaldo Gollo
Da Redaçao
05/08/2000 | 17:29
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Uma das maiores fábulas da literatura infantil mostra a linda mocinha encontrando seu príncipe encantado em um baile. Os bailes tradicionais guardam um pouco da ilusao de Cinderela, onde as pessoas procuram paixoes rodopiando pelo salao. Com o toque brasileiro: "Pelos estatutos da nossa gafieira, dance a noite inteira, mas dance direito".

As sandálias de salto alto, prateadas, podem parecer exageradas. Mas nao é o caso, vista ao lado do par de sapatos bicolores do parceiro. O clima do salao de baile pede. "Há um ritual a ser obedecido, que inclui as roupas", diz o empresário Itamar, 40 anos, que, com aquela malandragem de outrora insinuada no ambiente, prefere nao dizer o sobrenome. A namorada Edna, 44, a da sandália prateada, concorda.

Os dois freqüentam o salao de baile do Icaraí, na Vila Assunçao, em Santo André, há quatro anos. Há três anos, durante um bolero, começaram a namorar. Desde entao, todas as semanas freqüentam o salao. E nao desrespeitam o estatuto: atravessam a pista como virtuoses da dança. Chamariam mais a atençao - além dos sapatos - se nao fosse a grande quantidade, quase maioria, de pares tao bons ou melhores que eles. Amadores até freqüentam os bailes, mas a pista é dominada pelos profissionais. Anos de experiência na dança.

Classe média, acima dos 30 anos, situaçao financeira estabilizada... Homens ou mulheres, os freqüentadores de bailes sao bons partidos, como se dizia antigamente. "Muita gente vem aqui buscar sua cara-metade", garante José Vicente Guerra, dono e anfitriao do Icaraí, palco dos maiores bailes da regiao nos dias de hoje (leia texto nesta página). "E já unimos muita gente. Todo ano, organizamos um baile especial com mais de 200 casais que se conheceram aqui no salao."

A sinergia de dança e nostalgia raramente falha para acender o romantismo. Tanto é, que a agência de encontros Arte de Amar distribui, há cerca de um mês, folhetos de divulgaçao nas mesas do Icaraí. "Muitas pessoas vao aos bailes procurando alguém", diz Selma Maria Coelho, uma das donas da agência. A Arte de Amar tem recebido diariamente, em média, 16 inscriçoes de freqüentadores do baile. "Estamos cadastrando todos até o dia 30 deste mês. Depois, vamos começar a agendar os encontros."

Domingos Simonelli, 47 anos, gerente financeiro, de Santo André, e Leda Manfren, 40, professora de Educaçao Física, de Sao Caetano, nao precisaram de uma agência. Bastou - adivinhe - um bom bolero para uni-los ali mesmo no salao. Dois anos atrás, um amigo em comum os apresentou. Dois pra lá, dois pra cá, e um convite do rapaz para um café. Desde entao, o namoro. Pelo menos uma vez por semana, vao ao Icaraí. E sempre se aperfeiçoando. "Estamos fazendo aulas de chá-chá-chá", diz Leda.

E a música e a dança contaminam o sangue de forma que nem o tempo cura. É o caso de Zito Imel e Maria Aparecida, ambos 54 anos. A paixao que os mantém casados há 34 anos, tratando-se como namorados, nasceu em um salao de bailes. No Sociedade Amigos do Jardim Itália, no alto da Mooca, na capital.

"Foi em 64... 65...", puxa pela memória Zito. "Foi em 7 de setembro de 1965", diz de bate-e-pronto, com exatidao, Maria Aparecida. Com a orquestra, o repertório de Bienvenido Granda, Ray Conniff, Carlos Galhardo, Nat King Cole... "Boleros", lembra Maria Aparecida. "Nao há música melhor para provocar casamentos."

E o casamento veio, os filhos vieram, e os bailes se foram. O casal, que mora em Sapopemba, zona Leste de Sao Paulo, ficou 20 anos sem entrar em um salao de bailes. "Criar filhos, tratar dos negócios...", justificam os dois - ele, empresário; ela, comerciante. Hoje, com os filhos crescidos, vêm três vezes por semana para os bailes do Icaraí, em Santo André.

Casais se unem em bailes... "Mas só nao posso dizer sobre os que se separam", diz Guerra em tom malandro. "Cansei de ver mulher vir buscar o marido aos pescoçoes aqui nas madrugadas."

Desde os 15 anos na noite. Primeiro, como freqüentador - boêmio pé-de-valsa mesmo. Tornou-se empresário, tentou a política. Perdeu quase tudo com tratamento médico, depois de um acidente de moto que quase o matou. Ex-sócio da empresa de transportes Icaraí, José Vicente Guerra, 59 anos, manteve apenas o nome na antiga quadra esportiva e refeitório da empresa, hoje o Icaraí Eventos e Convençoes, também chamado - por alguns antigos freqüentadores - de Clube de Dança Icaraí.

Nao tao antigo assim. Apesar de dar a impressao de que sempre houve os bailes do Icaraí, a casa tem apenas sete anos. Sua ligaçao com a empresa de ônibus acabou na virada dos anos de 1980 para os de 1990. Adorava motos.

Em 1989, a 130 km/h, Guerra bateu. Teve perfuraçao do pulmao, abriu o crânio e era dado como morto na certa. Trinta dias de UTI, nove meses de imobilizaçao, U$ 700 mil de tratamento e quatro anos de recuperaçao de traumas depois, Guerra voltou para a noite, dessa vez, como empresário.

Dançar, só um pouco. Pequenos prazeres. "Nao sou mais o mesmo da juventude. Perdi um pouco o equilíbrio depois do acidente." Mas antes... "Eu era um dos dez mais", garante. Seus bailes preferidos eram no Palácio de Mármore, o mitológico salao de festas do Moinho Sao Jorge dos anos de 1960, na avenida dos Estados. Na época, Guerra morava em Sao Paulo, mas a distância e a falta de um carro nunca foram problemas. "Eu vinha a pé da Vila Prudente até o Moinho. Nao perdia um baile." Sempre com seu melhor terno e seus melhores passos de dança.

Mas, se hoje já nao dança tanto, nao perde o contato com seu público. Sao cerca de 200 bailes por ano, animados ao vivo por 35 bandas que se revezam. "Sem nenhuma ocorrência policial", acrescenta, ressaltando o ambiente familiar. Em média, 800 pessoas passam pelo salao nas noites des sextas-feiras.

Guerra fugiu à regra da maioria dos casais que freqüentam seu salao. Casado há 33 anos, cinco filhos, nao conheceu sua mulher em um baile. "Aliás, ela nem gosta muito de baile. Nem meus filhos", garante. Sao namorados de infância - se conhecem desde a adolescência.




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