Desde o século XVIII, quando o primeiro compositor popular do país, Domingos Caldas Barbosa, entoou seus versos românticos, até os dias de hoje, em que o funk carioca extrapola todos os limites nos versos de seus ‘pancadões’, amor e erotismo são moedas correntes na música nacional.
Resultado de uma criteriosa pesquisa em acervos de gravadoras e entrevistas com 70 personalidades, o livro A História Sexual da MPB (Record, 588 págs, R$ 64 em média), do jornalista, produtor e pesquisador musical Rodrigo Faour, reúne expressivas canções nacionais para analisar as modificações no comportamento do brasileiro.
Dividida em sete capítulos, a obra aborda questões como a evolução da mulher, a sensualidade, o duplo sentido, as transgressões, os gays na MPB e a dor-de-cotovelo. Apesar do tamanho não importar nos assuntos mais íntimos e, menos ainda, na literatura, o livro, que traz dois saborosos encartes de 32 páginas, com 150 capas de discos representativos das últimas cinco décadas, pode intimidar o leitor à primeira vista. Mas, amparado por informações de letristas, intérpretes, além de especialistas como a colaboradora do Diário, a sexóloga Regina Navarro Lins, e estudiosos da MPB, Faour discorre sobre os tópicos sem se engessar em textos acadêmicos.
De acordo com o autor, até a década de 60, o enfoque predominante na MPB era passional, conservador e extremamente machista. As mulheres eram tratadas como ‘diabos de saia’, sedutoras e traiçoeiras.“Essa obsessão pelos amores mal resolvidos ou interditados só foi arrefecer no final da década de 60, quando a liberação dos costumes fez surgir centenas de canções sensuais, de amores mais felizes e também de músicas em que, mesmo que haja algum impedimento, não se parte logo para o achincalhe do outro, a vingança, o desespero ou a auto-piedade”, ressalta Faour.
Segundo ele, nos anos 40 e 50, durante a era de ouro do rádio e do samba-canção, “ao homem tudo era permitido e as mulheres e os homossexuais eram figuras de segunda classe”.
Corta-jaca – Em um dos capítulos mais instigantes, intitulado Do Corta-jaca à Quebra-Barraco, Faour compara o escândalo provocado pelo maxixe, ritmo sensual recriminado pela elite cultural no século XIX, e as reações de setores da sociedade às palavras de baixo calão cantadas por funkeiros. Conforme o autor, que estreou no mercado editorial com a elogiada biografia do cantor Cauby Peixoto, Bastidores: 50 Anos da Voz e do Mito, lançada em 2001, apesar das transformações culturais ocorridas nos últimos 40 anos, a hipocrisia continua presente quando se trata de sexo.
Cita como exemplo o Corta-jaca, popularíssimo maxixe composto em 1895 por Chiquinha Gonzaga, que faz referência ao órgão sexual feminino. “(...) Sou gostosa, que dá gosto de talhar/ Sou a jaca saborosa, que amorosa/ Faca está a reclamar/ Para a cortar/ Ai, que bom cortar a jaca/ Sim, meu bem ataca”, diz um dos trechos da maliciosa canção, que poderia pertencer ao repertório de Deise Tigrona ou Tati Quebra-Barraco.
Gays – Apesar da suposta liberalidade do brasileiro no território do sexo, que fica evidente na época do Carnaval, o homossexualismo só começou a ser tratado de maneira menos preconceituosa na década de 70, em que a androginia de grupos como Secos e Molhados, capitaneado pelo cantor Ney Matogrosso, escandalizou os moralistas. Entretanto, em 1903, um ano após a fundação da indústria fonográfica, o ator Lino gravou a cançoneta O Bonequinho, com nítidas referências ao comportamento gay.
"É frustrante ver que, depois de um boom de músicas com personagens gays terem inundado a MPB na virada dos anos 70 para os 80, hoje, tão poucas canções – especialmente de amor – sejam feitas nesta perspectiva. Também frustrante é ver artistas notoriamente homossexuais ainda insistindo em tratar o ser amado exclusivamente na terceira pessoa. É incrível como ‘sair do armário’ na MPB é ainda um grande tabu”.
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