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Um tiro no escuro
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
05/10/2006 | 21:15
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Assistir a um filme de Brian De Palma é, quase sempre, a constatação de que o cinema não tem mais aonde ir, não tem mais o que descobrir. E isso não é uma desqualificação. O diretor invariavelmente remete a um cinema passado, a um formalismo da imagem como estruturação narrativa. Mais de uma vez mencionou Hitchcock, citou Eisenstein, reviu Kubrick para apontar que a burilação da imagem, a arquitetura milimétrica da montagem ainda é uma forma de manifestação possível e renovadora em uma arte novidadeira, que se entrega a qualquer badulaque tecnológica com o afã de um beatlemaníaco diante de uma edição limitada do Álbum Branco. Ultrapassado, caduco? O novo Dália Negra prova que não.

De Palma desta vez olha não só para o cinema anterior a ele. Olha, agora, para seu próprio cinema, para sua maníaca propriedade de reconstrução da imagem moderna a partir de referenciais tornados visíveis. Dália Negra reencontra o filme noir, com hipertextos a obras de Billy Wilder e John Huston e seus detetives cuja única vulnerabilidade são os encantos homicidas das femmes fatales.

O longa é inspirado em romance homônimo de James Ellroy (editado no Brasil pela Record). O escritor, que também forneceu o argumento para Los Angeles: Cidade Proibida (outro noir reloaded), investigou o caso real do brutal assassinato, nos anos 40, da aspirante a atriz Betty Short (Mia Kirshner), a tal Dália Negra. Seu corpo é encontrado depois de torturado, violentado e partido em dois, numa cena que requer um belo condicionamento estomacal. Uma dupla de policiais, pugilistas frustrados (Josh Hartnett e Aaron Eckhart), são designados para investigar o crime e topam com uma série de mulheres dúbias, desde aquela que é casada com um deles (Scarlett Johansson) a uma idosa senhora (Fiona Shaw), sem esquecer da intrigante personagem de Hilary Swank.

Estão postos os alicerces do filme noir – gênero policial que se constituía sobre contrastes cromáticos, que tornava heróis homens que eram verdadeiros depósitos de vícios e exibia mulheres de sensualidade certa e índole duvidosa. De Palma ergue seu prédio audiovisual a partir desses mesmos alicerces, mas os deixa expostos, propositalmente, sem a argamassa dos arquétipos dos filmes do gênero que o precederam.

É evidente que conhece os efeitos de um filme policial, as ansiedades que cria, a obrigatoriedade de uma trama intricada. Na relação entre o masculino e o feminino, que sempre foi escora do noir autêntico e vetor de suspense, reforça o peso a favor das mulheres, fragilizando os detetives quando confrontados com elas. Deixa a nu, em cena entre os personagens de Hartnett e Scarlett, a dependência instintiva do homem diante da mulher. Avalia a relação sexual como provedora de um clima de suspense.

Nessa cruzada analítica do relacionamento entre filme e espectador, De Palma não poderia deixar de abordar o voyeurismo, outra de suas manias. Nos flashbacks da Dália morta, uma série de testes dramáticos aos quais ela se submeteu, cria-se uma atmosfera de admiração da atriz como imagem. Mas não sem inusitadas golfadas de desconforto e até de ironia, por saber que aquilo, aquela moça filmada, é uma tentativa de evitar a morte, de reverter a extinção da vida. Que o olhar é a suspensão da mortalidade.

De Palma reconstrói um gênero e promove a superexposição de seus estereótipos (às vezes, até os torna caricaturas) para exemplificar que o cinema só faz recriar. Pode até sugerir que crê na morte do cinema, na extinção do seu modo particular, de refilmar para criar. Crê, de fato, que aperfeiçoamento técnico é uma forma de manifestação artística. E não o academicismo praticado pela maioria.

DÁLIA NEGRA (The Black Dahlia, EUA/ Alemanha, 2006). Dir.: Brian De Palma. Com Josh Hartnett, Scarlett Johansson, Aaron Eckhart, Hilary Swank, Mia Kirshner, Fiona Shaw. Estréia nesta sexta-feira no ABC Plaza 9, Mauá Plaza 5, Central Plaza 5 e circuito. Duração: 121 minutos. Classificação etária: 16 anos.




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