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Heitor conhece a glória

Heitor é menino sabido. Carrega no cerne o perfil intelectual...

Rodolfo de Souza
12/05/2016 | 07:00
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Heitor é menino sabido. Carrega no cerne o perfil intelectual que lhe permite surpreender os adultos com observações, perguntas e constatações pouco condizentes com as opiniões normalmente manifestadas por garotos da sua idade. De fato, nota-se nele uma personalidade qualquer coisa além do seu tempo.

Logicamente que não deixa de ser uma criança que, no auge dos seus seis anos, embala nas brincadeiras e nas fantasias toda uma vida que só principia.

Por certo que Heitor vai bem nos estudos, novidade nenhuma para uma mente astuta e curiosa, tudo indica, fadada ao sucesso. Sua escola, diga-se de passagem, muito boa, o auxilia na descoberta gradual do conhecimento. Fora escolhida a dedo por papai e mamãe que a elegeram para dar início ao polimento da pedra que já se manifestava valiosa antes mesmo que as primeiras letras o levassem à descoberta de um mundo cheio de possibilidades.

Tudo muito lindo, até que...

Bom. Para tirar o sono da mãe que se esmera na dedicação ao filho, a entidade, de repente, cismou que judô seria boa pedida para o crescimento da molecada. Imagine o trauma que esta decisão veio a causar na zelosa mente materna! Pois é... Papai e mamãe educam o filho, gastam horas de papo cabeça com o garoto, apresentam-lhe os livros e falam de sua importância e também da importância de se preservar os joelhos, os cotovelos e a testa, se contrapondo às brincadeiras de mau gosto, tão peculiares ao meio infantil... E agora...

— Para o bem do coração da mamãe, fique longe de garotos brutos, filhinho!

E como lidar com a ideia tresloucada de algum coordenador irresponsável que decidira arbitrariamente submeter minha criança à violência?

Só que Heitor, moleque que é, gostou do quimono, do tatame, da disciplina, dos rituais, do agarra-agarra seguido do tombo...

— Chiii!!! É legal!!

E, para o desespero de mamãe, Heitor levou para casa todo o seu entusiasmo, contando as mil peripécias que vinha aprendendo. Percebeu-se logo que era dedicado aluno também para com a novidade. Ai meu Deus!

E o atônito casal passou a elaborar conjecturas acerca da cruel realidade que insiste em lhes esfregar na cara o mundo para o qual cria o seu rebento. Mamãe, então, lamenta o destino que colocará barba no rostinho angelical do seu filho. Recusa-se a aceitar que, um dia, terá perna cabeluda o seu bebê. Logo ele que agora arrisca sua pele sensível praticando esporte tão violento. Natação certamente seria melhor opção, ainda que correria o risco, meu filhinho, de contrair constantes resfriados e, quem sabe, até uma rinite. Talvez se eu instalasse uma piscina coberta e aquecida, bem quentinha, aqui em casa...!!

Devaneios à parte, fato é que, não bastassem as aulas, a escola ainda criou um dia de competição, só para instigar a euforia de papais mais afoitos que sonham com um filho campeão.

Logicamente que pensou em todos os detalhes que conferiam um tom mais sério ao certame. Até ambulância deixou ali, à disposição, caso algum nariz sangrasse por obra de um sopapo qualquer, movimento um tanto comum em eventos como este.

Uma vez lá, Heitor tinha os olhos ansiosos de quem estava diante de algo novo, que ainda não experimentara. Quanto a papai e mamãe, estes sentiam uma mistura de apreensão com orgulho. Mamãe, inclusive, observou o cuidado para com a segurança dos alunos, referindo-se à ambulância.

Heitor, vestido a caráter e cheio de alegria, dirigiu-se ao casal para perguntar o que era aquela escada alta com três degraus numerados. O pai tratou logo de explicar-lhe para que servia aquilo, revelando também o seu nome. Teve ainda o cuidado de lhe dizer que o importante é participar, não vencer. Reiterou, algumas vezes, a máxima para enfatizá-la, preocupado com a reação do filho caso tivesse que aplaudir um coleguinha vencedor.

Só que não foi desta vez que Heitor inaugurou em sua vida o sinistro sentimento de frustração diante da derrota. Quando tudo acabou, o menino viu seu braço direito levantado bem alto e enfim pôde se deslumbrar com o ponto mais alto do pódio. Conhecera, afinal, a glória.

Oh! Glória!

* Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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