Bruto, diabólico, egoísta, genial, louco, obsessivo, quieto, sarcástico, surpreendente e sedutor. São muitos os adjetivos atribuídos ao coreógrafo Sandro Borelli, sem que nenhum deles ou mesmo este conjunto - mencionado por colegas de linóleo - defina-o por completo ou de forma definitiva.

Durante dois anos, o jornalista Mauro Fernando, integrante da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) e ex-Diário, mergulhou no universo da Cia. Borelli, usina de criação onde a força motriz, o próprio coreógrafo, nascido em Santo André, gera espetáculos de singular beleza e contundência. Uma arte atormentada, incômoda, que transborda as aflições da humanidade e, por isso mesmo, libertadora. O resultado dessa experiência pode ser conferido nas 115 páginas de Sonhos Intranquilos, livro lançado como parte de projeto contemplado no Programa Municipal de Fomento à Dança da Secretaria de Cultura de São Paulo.

Mauro Fernando refaz a trajetória da companhia de forma contextualizada com riqueza de detalhes. Percorre desde a criação da FAR-15, em junho de 1997, passando pela transição desta para a Cia. Borelli de Dança, em 2003, até os dias de hoje, não sem antes mencionar os primeiros passos do coreógrafo em trabalhos como o da Companhia de Danças de Diadema.

"A partir de cada espetáculo, procurei abordar um aspecto diferente da relação de Borelli com o público, com os outros criadores, com o elenco. É um livro que tem uma pegada jornalística. Não é biografia da companhia, porque tem a visão minha também. Procurei escrever uma de maneira que mais pessoas pudessem entrar na história", afirma o autor.

Estão lá passagens curiosas, como a vez em que dois senhores, escandalizados, abandonaram teatro na Argentina onde a companhia encenava Os Pássaros Machucaram o Menino M. O coreógrafo surgia em cena nu da cintura para baixo. No Teatro Clara Nunes, em Diadema, em 2007, uma senhora perguntara indignada, à amiga ao lado: "Isso é arte?". Em cena, o beijo de dois homens, parte do espetáculo Carne Santa.

Mas estão em Sonhos Intranquilos, também, informações que permitem ir além na análise sobre a instigante obra de Borelli. A morte da mãe dele, por exemplo, o levou a criar A.V.C., de 1999, "A morte é um dado presente na obra dele, certamente", diz Mauro Fernando. "Não de maneira factual, mas no sentido da anulação do indivíduo, do fenecer intelectual."

Ela perpassa a safra kafkiana da companhia, que, aliás, responde pela maior parte do repertório. São sete coreografias - entre elas A Metamorfose, Carta ao Pai e O Processo - inspiradas na obra do escritor tcheco. "Viver é kafkiano", sentencia Borelli no livro.

A obra de Mauro Fernando, contudo, não tem ‘ponto final'. Opina, mas não conclui. Sugere e instiga, conduz à reflexão. E, é claro, seduz o leitor à experiência intensa que é assistir a um espetáculo da companhia. Pois é ali, no palco, que emergem das profundezas toda a inquietação e angústia do criador. Dança intensa e movimentos que nascem dos sonhos intranquilos de Sandro Borelli.

O livro de Mauro Fernando não está à venda. Instituições culturais interessadas em recebê-lo devem contatar a companhia.

Repertório
Fá - Se Querem Gritar Para o Mundo (1997)
A Solidão Proclamada (1998)
Bent - O Canto Preso (1988)
33 - O Eu e o Outro (2000)
Senhor dos Anjos (2001)
Jardim de Tântalo (2001)
A Metamorfose (2002)
Kasulo (2003)
O Abutre (2003)
O Processo (2003)
Gárgulas (2004)
Carta ao Pai (2006)
Kafka in Off (2007)
Carne Santa (2007)
Artista da Fome (2008)
Estado Independente (2009)
Cia. Borelli de Dança - Sede: Kasulo Espaço de Cultura e Arte - Rua Souza Lima, 300, São Paulo. Tel.: 3825-2711. Site www.ciaborelli.com