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'O Viajante' poe fim a trilogia de Saraceni
Do Diário do Grande ABC
03/02/2000 | 15:55
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"O Viajante", que estréia esta sexta-feira, é o fecho da trilogia Lúcio Cardoso by Paulo Cezar Saraceni. Ela começou com "Porto das Caixas" (1962), prosseguiu com "A Casa Assassinada" (1971) e termina agora com a adaptaçao do romance deixado inconcluso pelo escritor mineiro. Sao três adaptaçoes diferentes, como lembra Saraceni em conversa com a reportagem. "'Porto das Caixas' foi um roteiro original, 'A Casa Assassinada' representou o desafio de interpretar no cinema um clássico da literatura e 'O Viajante' foi um trabalho em cima de fragmentos e versoes diferentes de um livro que nunca ficou pronto".

Mais que parceiros, o cineasta e o escritor foram amigos e companheiros de farra na mitológica Ipanema dos anos dourados. "O Lúcio era o grande festeiro do bairro", lembra-se Saraceni. "E suas festas eram muito mais liberais que as do Aníbal Machado, que era o seu concorrente na matéria", acrescenta. Mas mais do que recordar a figura do farrista, Saraceni destaca o contraste entre o artista e o homem. Lúcio Cardoso era um boêmio liberal, de hábitos heterodoxos e dono de grande alegria de viver. "No entanto, sua obra é trágica, corrosiva, radical", diz o cineasta.

Saraceni conta que estava estudando cinema na Itália (no Centro Esperimentale, em Roma) e voltou para o Brasil especialmente para desenvolver o projeto de adaptaçao da "Crônica da Casa Assassinada", romance que adorava. "Eu poderia ter ficado por lá; já conhecia cineastas como Bernardo Bertolucci, que tinha estudado comigo, mas decidi voltar para tocar o projeto de adaptaçao do romance". No entanto, quando chegou, Saraceni encontrou um ambiente econômico deteriorado e nao conseguiu levantar o dinheiro para uma produçao que se anunciava cara demais.

Felizmente, Lúcio Cardoso desenvolveu a idéia de "Porto das Caixas", produçao mais realizável. "Ele passou por acaso por essa cidade fluminense e teve a inspiraçao para a história" conta Saraceni. Para escrevê-la, Lúcio baseou-se num assassinato famoso da época, o "crime da machadinha". A história era sobre o assassinato de um homem por sua mulher e o amante dela. O argumento de Lúcio Cardoso, desenvolvido no roteiro por Saraceni, enfatizava o clima sufocante de uma cidadezinha isolada do mundo, sem perspectivas, sem saída, que levava ao desespero a protagonista, interpretada pela argentina Irma Alvarez.

Bem diferente foi a adaptaçao de "Crônica da Casa Assassinada", um catatau de 518 páginas na reediçao da Civilizaçao Brasileira. Contrariando a opiniao de gente que achava o livro inadaptável, Saraceni apresentou um roteiro de apenas 35 páginas ao autor. "Ele gostou muito e elogiou o espírito de síntese do texto", diz o cineasta. Saraceni diz que gosta de escrever roteiros enxutos, para que no momento da filmagem haja espaço para a improvisaçao, para a invençao propriamente cinematográfica.

Tragédia mineira - Já o trabalho com "O Viajante" foi mais de reconstruçao, considera o diretor. "Havia várias versoes de um romance deixado incompleto e depois organizado por Otávio de Faria", diz. Existiam indicaçoes daquilo que Lúcio Cardoso tinha em mente, mas nao havia uma história completa, fechada, com começo, meio e fim. Saraceni teve de criar em cima daquilo que tinha. Segundo ele, teve de fazer uma "remontagem" do texto, uma reediçao crítica e criativa, para completar as lacunas. "O importante era manter o barroquismo do Lúcio", afirma.

O resultado dessa reelaboraçao de um material incompleto é, segundo o diretor, "uma tragédia, romântica, mística, barroca". Uma tragédia mineira, por excelência. De fato, o enredo mostra o cotidiano de uma cidadezinha de Minas, onde uma viúva rica (Ana de Lara) vai ao limite da existência para agradar ao seu amante (Jairo Mattos). Em cena, mais uma vez, está um cotidiano sufocante, no qual as paixoes se mantêm latentes até que explodem de maneira destrutiva. "Os mineiros, em especial os de Belo Horizonte, nao gostaram do que viram na tela", conta o diretor. Apesar disso, ele ressalta, em cidades menores, como Ubá e Tiradentes, as reaçoes foram melhores.

"O filme é mesmo um soco na alma mineira", diz Saraceni. E essa força, esse impacto, só foi possível pela presença de uma grande atriz como Marília Pêra no elenco. Saraceni relata uma história curiosa. Ele estava jantando, com Marília, num antigo colégio religioso, em Ubá, quando viu na parede um quadro com uma frase de d. Hélder Câmara. "Era algo mais ou menos assim: 'Se você já chegou até aqui, vá até o fim, mesmo que chegue aos pedaços'". Segundo o diretor, a frase teria dado força a ele e a Marília para filmar as cenas mais difíceis. Entre elas, o ponto alto do filme, a crise religiosa e existencial de Ana de Lara, quando ela renega Cristo. Cena de arrepiar.




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